segunda-feira, 1 de março de 2010

O QUE É FILOSOFIA? O QUE É FILOSOFIA DO DIREITO? O QUE É FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO? O QUE É ÉTICA? O QUE É ÉTICA NA ADMINISTRAÇÃO? O QUE É ÉTICA NA EDUCAÇÃO?


    Escola de Atenas - Séc. XVI representa a Grécia Antiga, por meio de seus filosófos, como Plantão e Aristóteles.

Obs.: Artigos de diversos autores abordando as questões acima!!!
          Boa Leitura.

ARTIGO 01
O QUE É FILOSOFIA, PROFESSOR? E PARA QUE SERVE?[1]

Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra
1. Da definição de Filosofia

A Filosofia é um ramo do conhecimento que pode ser caracterizado de três modos: seja pelos conteúdos ou temas tratados, seja pela função que exerce na cultura, seja pela forma como trata tais temas. Com relação aos conteúdos, contemporaneamente, a Filosofia trata de conceitos tais como bem, beleza, justiça, verdade. Mas, nem sempre a Filosofia tratou de temas selecionados, como os indicados acima. No começo, na Grécia, a Filosofia tratava de todos os temas, já que até o séc. XIX não havia uma separação entre ciência e filosofia. Assim, na Grécia, a Filosofia incorporava todo o saber. No entanto, a Filosofia inaugurou um modo novo de tratamento dos temas a que passa a se dedicar, determinando uma mudança na forma de conhecimento do mundo até então vigente. Isto pode ser verificado a partir de uma análise da assim considerada primeira proposição filosófica.
Se dermos crédito a Nietzsche, a primeira proposição filosófica foi àquela enunciada por Tales, a saber, que a água é o princípio de todas as coisas [Aristóteles. Metafísica, I, 3].
Cabe perguntar o que haveria de filosófico na proposição de Tales. Muitos ensaiaram uma resposta a esta questão. Hegel, por exemplo, afirma:

"com ela a Filosofia começa, porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si. Começa aqui um distanciar-se daquilo que é a nossa percepção sensível".

 Segundo Hegel, o filosófico aqui é o encontro do universal, a água, ou seja, um único como verdadeiro.
 Nietzsche, por sua vez, afirma:

"a filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matiz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida [sic], está contido o pensamento: ‘Tudo é um’. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego".

O importante é a estrutura racional de tratamento das questões. Nietzsche analisa esse texto, não sem crítica, e remarca a violência tirânica como essa frase trata toda a empiria, mostrando que com essa frase se pode aprender como procedeu toda a filosofia, indo, sempre, para além da experiência.
A Filosofia representa, nessa perspectiva, a passagem do mito para o logos. No pensamento mítico, a natureza é possuída por forças anímicas. O homem, para dominar a natureza, apela a rituais apaziguadores. O homem, portanto, é uma vítima do processo, buscando dominar a natureza por um modo que não depende dele, já que esta é concebida como portadora de vontade.
Por isso, essa passagem do mito à razão representa um passo emancipador, na medida em que libera o homem desse mundo mágico.

"De um sistema de explicações de tipo genético que faz homens e coisas nascerem biologicamente de deuses e forças divinas, como ocorre no mito, passa-se a buscar explicações nas próprias coisas, entre as quais passa a existir um laço de causalidade e constâncias de tipo geométrico [...] Na visão que os mitos fornecem da realidade [...] fenômenos naturais, astros, água, sol, terra, etc., são deuses cujos desígnios escapam aos homens; são, portanto, potências arbitrárias e até certo ponto inelutáveis".

A ideia de uma arqué, que tem sentido amplo em grego, indo desde princípio, origem, até destino, porta uma estrutura de pensamento que a diferencia do modo de pensar anterior, mítico. Com Nietzsche, pode-se concluir que o logos da metafísica ocidental visa desde o princípio à dominação do mundo e de si. Se atentarmos para a estrutura de pensamento presente no nascimento da Filosofia, podemos dizer que seu logos engendrou muitos anos depois, o conhecimento científico. Assim, a estrutura presente na ideia de átomo é mesma que temos, na ciência atual, com ideia de partículas. Ou seja, a consideração de que há um elemento mínimo na origem de tudo. A tabela periódica também pode ser considerada uma sofisticação da ideia filosófica da combinatória dos quatro elementos: ar, terra, fogo, água, da qual tanto tratou a filosofia eleática.
Portanto, em seu início, a Filosofia pode ser considerada como uma espécie de saber geral, omniabrangente. Tal saber, hoje, haja vista os desenvolvimentos da ciência, é impossível de ser atingido pelo filósofo.
Temos, portanto, até aqui:

i] a Filosofia como conhecimento geral;
ii] a Filosofia como conhecimento específico.

2. Do método da Filosofia

A ciência moderna, caracterizada pelo método experimental, foi tornando-se independente da Filosofia, dividindo-se em vários ramos de conhecimento, tendo em comum o método experimental. Esse fenômeno, típico da modernidade, restringiu os temas tratados pela Filosofia. Restaram aqueles cujo tratamento não poderia ser dado pela empiria, ao menos não com a pretensão de esclarecimento que a Filosofia pretenderia.
A característica destes temas determina um modo adequado de tratá-los, já que eles não têm uma significação empírica. Em razão disso, o tratamento empírico de tais questões não atinge o conhecimento próprio da Filosofia, ficando, em assim procedendo, adstrita ao domínio das ciências.
Ora, o tratamento dos assuntos filosóficos não se pode dar de maneira empírica, porque, desta forma, confundir-se-ia com o tratamento científico da questão. Por isso, no dizer de Kant

"o conhecimento filosófico é o conhecimento racional a partir de conceitos".

 Ou seja,

"as definições filosóficas são unicamente exposições de conceitos dados [...] obtidas analiticamente através de um trabalho de desmembramento".

Portanto, a Filosofia é um conhecimento racional mediante conceitos, ela constitui-se num esclarecimento de conceitos, cuja significação não pode ser ofertada de forma empírica, tais como o conceito de justiça, beleza, bem, verdade, etc.
Apesar de não termos uma clara noção destes conceitos, nem mesmo uma significação unívoca, eles são operantes na nossa linguagem e determinam aspectos importantes da vida humana, como as leis, os juízos de beleza, etc.

3. Da função da Filosofia

Em razão da impossibilidade de abarcar, hodiernamente, todo o âmbito do conhecimento humano, parece mais plausível pensar numa restrição temática à Filosofia, deixando-a tratar de certos temas, como os mencionados acima. Nesse sentido, a filosofia teria um âmbito de problemas específicos sobre os quais trataria.
 No entanto, o tratamento desse âmbito específico continua a manter ao menos uma função geral, a qual pode ser considerada de forma extremada ou de forma mais modesta. Assim, a lógica, a ética, a teoria do conhecimento, a estética, a epistemologia são disciplinas filosóficas, tendo uma função geral para o conhecimento em geral, seja para as ciências, a partir da lógica, teoria do conhecimento, epistemologia, seja para os sistemas morais, a partir da ética filosófica, seja para as artes, a partir dos conhecimentos estéticos. Por exemplo, no que concerne à lógica, ao menos como a concebeu Aristóteles, ela pode apresentar uma refutação do ceticismo e, portanto, estabelecer a possibilidade da verdade, determinando a obediência necessária ao princípio de não contradição.
De forma menos modesta, mas não sem o mesmo efeito, podemos dizer que as outras disciplinas pretendem o mesmo, determinando, portanto, a possibilidade de conhecimentos morais, estéticos, etc. No caso da moral, ela pode mostrar que questões controversas podem ser resolvidas racionalmente, bem como apontar para critérios de resolução racional de problemas. [...] 

Bibliografia

APEL, Karl-Otto. O desafio da crítica total da razão e o programa de uma teoria filosófica dos tipos de racionalidade. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo: n. 23, mar. 1989. p. 67-84.
CHAUÍ, Marilena et al. Primeira Filosofia: lições introdutórias. Sugestões para o ensino básico de Filosofia. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 1986.
HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. (Trad. de Guido A. de Almeida: Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990.
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa (I). Madrid, Taurus, 1987.
HEGEL, Georg W. F. Preleções sobre a história da filosofia. [Trad. E. Stein]. In SOUZA, José Cavalcante de [org.] Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
KANT, I. Crítica da razão pura. (Trad. de Valério Rohden: Kritik der reinen Vernunft). São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. (Trad. A. Morão). Lisboa: E. 70, 1988.
NIETZSCHE, Friedrich. Os filósofos trágicos. [Trad. R. R. Torres Filho]. In SOUZA, José Cavalcante de [org.] Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. [J. Pires: Philosophy and the mirror of nature]. Lisboa: D. Quixote, 1988.
WATANABE, Lygia Araujo. Filosofia antiga. In CHAUÍ, Marilena et al. Primeira Filosofia: lições introdutórias. Sugestões para o ensino básico de Filosofia. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 13-35.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1979.



ARTIGO 02

PARA QUE FILOSOFIA DO DIREITO? ATITUDE
FILOSÓFICA: INDAGAR[2]
Fábio Henrique Cardoso Leite

“O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E, contudo não sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições”. (Husserl)


A pergunta “Para que Filosofia do Direito?” tem sua razão de ser. A resposta para esta pergunta, podemos definir da seguinte maneira: A filosofia do Direito parte de dogmas pré-estabelecidos para indagações, transcendendo o conhecimento positivo através de uma análise crítica, que levará a um conhecimento mais completo e justo tanto da interpretação como da aplicabilidade das leis. Daí, a fundamental e absoluta importância do direito, que, por seu caráter universal, torna-se passível de uma investigação filosófica em busca da realidade jurídica. Como podemos perceber o conhecimento que não é dado a nós, seres humanos, como uma faculdade inata, produzida naturalmente por herança genética e crescimento biológico. Nós precisamos aprender a pensar e nos dedicamos a isso ao longo de toda a nossa vida. Essa aprendizagem depende de duas coisas: da convivência com outras pessoas e da reflexão sobre nossos próprios pensamentos. Se nos inspirarmos nas origens do pensamento ocidental verificamos que a palavra Filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria. Os primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados de sábios, por terem consciência do muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos.
Ao tentarmos definir o que é Filosofia, somos projetados diretamente para dentro da filosofia, ou seja, somos levados a filosofar. O que teria marcado o surgimento da filosofia seria precisamente a colocação desta pergunta sobre o ser, sobre o Ser do que é (=os entes, as coisas) e, posteriormente, sobre o Ser em si mesmo considerando, como diverso do não Ser. A primeira dessas indagações aparece historicamente naqueles pensadores que formaram a chamada Escola Jônica, na Grécia do séc. V a.C., encabeçada por Tales de Mileto, seguido por Anaximandro e Anaxímenes, que com ela desenvolveram um estudo da física, ao procurar estabelecer o(s) princípio(s) que governava(m) a organização cósmica. A segunda pergunta aparece no famoso poema de Parmênides[3], e instaura um tipo de reflexão que, posteriormente, passará a se chamar de metafísica.
A pergunta por “o que é isto, a Filosofia?” não só nos remete aos primeiros filósofos, mas também a outros, bem mais próximos de nós, no tempo e no espaço. Isso porque essa pergunta foi colocada pelo filósofo contemporâneo Martin Heidegger. Por outro lado, se dissermos que é próprio da filosofia indagar “o que é isto: um ente” e “o que é que é Ser”, e se fizermos a pergunta se voltar sobre ela mesma, à filosofia, perguntando “o que é isto, a filosofia, que indaga sobre o que é isto e o que é que é Ser?”, estamos nos propondo a “discorrer filosoficamente sobre a filosofia”.
O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja à margem do mundo, nem que ela constitua um corpo de doutrina ou um saber acabado com determinado conteúdo, ou que seja um conjunto de conhecimentos estabelecidos de uma vez por todas. A teoria do filósofo não constitui um saber abstrato. O próprio tecido do seu pensar é a trama dos acontecimentos; é o cotidiano.
Por isso a filosofia se encontra no seio mesmo da história. No entanto, está mergulhada no mundo e fora dele: eis o paradoxo enfrentado pelo filósofo. Isso significa que o filósofo inicia a caminhada a partir dos problemas da existência, mas precisa se afastar deles para melhor compreendê-los, retornando depois a fim de subsídios as mudanças.
No campo da ciência, a filosofia está ligada à ciência, sendo o filósofo o sábio que reflete todos os setores da indagação humana.
A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu Galilei promove a autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Na verdade o que estava ocorrendo era o nascimento da ciência, como entendemos modernamente.
A filosofia trata da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas que as ciências se especializam e observam “recortes” do real, enquanto a filosofia jamais renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão da filosofia é de conjunto, ou seja, o problema tratado nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob a perspectiva de conjunto, relacionando cada aspecto com os outros do contexto em que está inserido.
A filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de valor. O filósofo parte da experiência vivida do homem trabalhando na linha de montagem, repetindo sempre o mesmo gesto, e vai além dessa constatação. Não vê apenas como é, mas como deve ser. Julga o valor da ação, sai em busca do significado dela.
Filosofar é dar sentido à experiência.
É mister lembrar que a necessidade da filosofia está no fato de que, por meio da reflexão, a filosofia permite ao homem ter mais de uma dimensão, além da que é dada pelo agir imediato no qual o “homem prático” se encontra mergulhado.
É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade; retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la.
Enfim, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada e não escolhida. Pela transcendência, o homem surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino.
A filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam manter o “status quo”, é aceitar o desafio da mudança. Saber para transformar. Depois desta abordagem sobre a importância da filosofia, podemos adentrar mais diretamente sobre o tema inicial: Para que serve a Filosofia do Direito?
O termo Filosofia do Direito pode ser empregado em acepção lata, abrangente de todas as formas de indagação sobre o valor e a função das normas que governam a vida social no sentido do juízo, ou em acepção estrita, para indicar o estudo metódico dos pressupostos ou condições da experiência jurídica considerada em sua unidade sistemática.
No primeiro sentido, Filosofia do Direito corresponde em última análise a um pensamento filosófico da realidade jurídica, e é sob este enfoque que se fala na Filosofia do Direito. Não se deve estranhar que tenha havido pensamento filosófico-jurídico desde quando surgiu a Filosofia, no ocidente ou no Oriente, em cada área cultural segundo distintas diretrizes. Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua convivência.
Visa a Filosofia do Direito em primeiro lugar, indagar dos títulos de legitimidade da ação do jurista. O advogado, ou juiz, enquanto se dedicam às suas atividades, realizam certa tarefa, cumprem certos deveres. A segunda ordem de questão refere-se aos valores lógicos da Jurisprudência ou da Ciência do Direito.

A que critérios devem manter-se fiel o jurista para poder ordenar a experiência social com coerência e rigor de ciência?

O problema lógico une-se assim ao problema ético, formando ambos um todo harmônico, unitário, que só por necessidade de análise haveremos de separar. Dessa correlação resulta um perene esforço, quer do legislador, quer do jurista, no sentido de estabelecer adequação cada vez mais precisa e prática entre os esquemas lógicos da Ciência do Direito e as infraestruturas econômico-sociais, segundo os ideais éticos que informam e dignificam a coexistência humana.
É assim que exigências lógicas, éticas e histórico-culturais, compõem a trama dos assuntos fundamentais pertinentes à Filosofia do Direito.
Um dos principais juristas contemporâneo, Miguel Reale, procurou mostrar em sua tese que o Direito é uma realidade tridimensional, compreendida através da soma de três fatores básicos: fato + valor + norma, (como, a bem da verdade, muitos autores antecedentes já haviam defendido), associados, por seu turno, entretanto, não através de uma forma simplesmente abstrata, mas sim num contexto essencialmente dialético, compreendido pela própria dinâmica do mundo real.
Em sua explanação teórica, Reale argumentou com mérita propriedade, que os três elementos dimensionais do Direito estão sempre presentes na substância do jurídico, ao mesmo tempo em que são inseparáveis pela realidade dinâmica da essência do próprio Direito, formando o contexto do denominado tridimensionalismo “concreto” que virtualmente se opõe ao tridimensionalismo “abstrato” que o antecedeu.
 Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia do Direito se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado.
Essas características são:

- Perguntar o que a coisa, ou o fato, ou a ideia, é. A Filosofia do Direito pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;
- Perguntar como a coisa, a ideia ou o valor, é. A Filosofia do Direito indaga qual a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor;
- Perguntar por que a coisa, a ideia ou a norma existe e é como é. A Filosofia do Direito pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia, de um valor.

A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Neste sentido, podemos perceber que na esfera transcendental ou filosófica, o ser do direito a cargo da Filosofia do Direito, enquanto que a cada uma das dimensões do Direito, - fato, valor e norma – correspondem uma das partes principais da Filosofia do Direito, ou seja, respectivamente, a culturologia jurídica (fato), deontologia jurídica (valor) e a epistemologia jurídica (norma).
É evidente que estas explicações são realidades que não devem e nem podem ser vistas e analisadas como estanques. Devem, ao contrário, ser encaradas e estudadas como visões completamentares do Direito, procurando traduzir a real substância complexa da verdadeira explicação do próprio fenômeno da existência jurídica.
Espírito Crítico: os problemas e enfoque do Direito e da realidade jurídica. Inegavelmente, o substrato da norma jurídica se traduz por seu próprio conteúdo.
O grande problema que se depara o Direito, entretanto, está justamente na variabilidade do conteúdo da norma que alcança expressões jurídicas e expressões não-jurídicas transcendentes, pois a substância da realidade da existência do jurídico é extremamente complexa e compreende também os fatos sociais e a sua consequente valoração intrínseca.
Por isso mesmo, alguns estudiosos entendem que há incontestáveis dimensões e planos do conhecimento jurídico e, sob esta ótica, Miguel Reale, entre outros, tão somente procurou polarizar o Direito em três âmbitos fundamentais.
Isto não quer dizer, todavia que Miguel Reale não possa ser visto também como um normativista, a exemplo de Hans Kelsen; mas apenas que procurou lançar novas perspectivas para analisar a realidade complexa do Direito, construindo um objeto abstrato da ciência (como categoria jurídica), delimitando (para ser mais bem entendido) e não isolado, permitindo entender melhor as relações internas do próprio fenômeno Jurídico.
Afinal qual a importância da Filosofia do Direito? A Filosofia do Direito ou a jusfilosofia, assume cada vez mais a postura criadora, crítica e de certa forma revolucionária. Inicia-se com a problematização dos fundamentos epistemológicos do saber jurídico tradicional e ao fazê-lo internaliza os questionamentos do pensamento social de modo geral.
É fundamental que a Filosofia do Direito saia das universidades e passe a pensar o Direito a partir do ponto de vista daquelas classes, se não por uma postura ideológica, pelo menos para que não fique alheia à vontade de seu tempo. Mas, de nada adiantará falar sobre uma reforma se não se estivermos com espírito crítico, imbuído no sentido da Filosofia Jurídica, imprimida aos novos textos legais. A nova Filosofia tomada pelo Código implica modificar a mentalidade do Juiz para fazer atuar o processo como instrumento de resultado. Terá de se implantar uma nova filosofia nos julgadores para poder dinamizar a reforma implantada.
Vale a pena ressaltar que nenhuma lei se esgota por si mesma e não é o seu enunciado que ditará o rumo exclusivo a ser tomado. A interpretação que vier a ser dada é que ditará o seu dinamismo. Por isso é que se deve ter o texto legal apenas como um referencial, um norte, que irá indicar ao intérprete e aplicador o caminho a ser seguido. Cabe aos juristas, consolidar essas conquistas, reforçando o sentido do Direito também como um espaço estratégico de extrema importância (política), para a efetiva transformação da realidade rumo a uma sociedade mais igualitária e democrática.
Enfim, a discussão do valor da Filosofia, deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a Filosofia contempla, a mente também se torna grande e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo.
A Filosofia do Direito, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos pré-conceitos e de nossas crenças.
Após esta breve reflexão, percebemos que o fenômeno jurídico e a filosofia andam juntos, e que não podemos fazer operacionalizar o direito sem o mínimo de conhecimento filosófico. A busca da justiça é um caminho que tem de ser percorrido de forma consciente. Não podemos nos distanciar da tradição, da história e dos conceitos elementares. Eis porque a filosofia nos direcionará à busca do conhecimento do direito. Poderemos sem pretensões outras dizer: onde está o direito aí estão presentes os elementos de filosofia.
O saber filosófico e o jurídico, na verdade, são complementares. O direito busca encontrar os elementos de justiça no sujeito para que ele possa ser contemplado pelo ideal de justiça em sua plenitude.
Por outro lado, a filosofia, procura na realidade do cotidiano do sujeito estabelecer uma relação entre a vida presente e as condições históricas do indivíduo.
 Ademais, não podemos eliminar as possíveis relações existentes no campo da compreensão do direito e da filosofia, pois tanto os mecanismos do direito que regulam os direitos individuais e coletivos do cidadão, quanto o conhecimento racional da verdade e do próprio fenômeno jurídico são essenciais na vida dos sujeitos em sociedade.


Bibliografia

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 2002.
ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando, Introdução à Filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1993.
COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
_____________. Teoria Tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
MENDES, Juscelino V. Zetética e Dogmática. Página de Juscelino Vieira Mendes, seção “Direito”. Sítio Campinas, 2003.



ARTIGO 03

TRÊS LIÇÕES DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO[4]

WALTER OMAR KOHAN
RESUMO: O presente trabalho busca pensar o valor de O mestre ignorante como exercício de filosofia da educação, em particular contrapondo-o a um modo, dominante, de exercer esse saber no seio de nossas instituições. Trata-se de uma história singular, pela qual todo mestre pode se perguntar por que e para que ensina; e, o que é ainda mais importante, pela qual pode questionar-se que diabos está fazendo consigo mesmo e com os outros, a cada vez que se veste de mestre em uma sala de aula. Depreendemos, desse exercício, três lições: a) o mais natural, evidente e aceito socialmente acaba sendo, filosoficamente, o mais problemático; b) somente pelo paradoxo, entranhados no lodo paradoxal, podemos encontrar algum sentido na educação; c) só há uma educação que vale a pena: a que emancipa (sem emancipar). Quem não deixa que os (as) outros (as) se emancipem embrutece.

Palavras-chave: Filosofia da educação. Emancipação. Sócrates.

THREE LESSONS OF PHILOSOPHY OF EDUCATION

ABSTRACT: This paper aims to rethink the value of The ignorant schoolmaster as an exercise in the philosophy of education, especially as counterpoised to the way philosophy of education is presently exercised in our institutions. It is a singular story, by which teachers can ask why and for what they teach and, even more meaningfully,
they can put into question what they are doing with themselves and with their students each time they enter a classroom. We can take three lessons from this exercise: a) that the most natural, evident and socially accepted pedagogical ends appear to be the most philosophically problematic; b) that only through paradox – through being thrown into the paradoxical mud – we can find some real meaning in education; c) that the only education worthy of the name liberates without liberating. The one who does not allow for the liberation of the others oppresses.

Key words: Philosophy of education. Emancipation. Socrates.


A filosofia da educação ocupa um lugar pouco interessante no universo acadêmico, ao menos em nossos países hispano-americanos. Depreciada na imensa maioria dos departamentos de filosofia das instituições de formação superior, acolhida nos de educação, costuma ser matéria obrigatória nos cursos de formação de mestres. Tornada, assim, muitas vezes, o único espaço de contato com a filosofia durante todo o processo de formação, seus docentes, programas e bibliografia costumam manter, no melhor dos casos, um caráter enciclopédico, totalizador e fundacionista. Em todo o caso, o repertório não parece muito variado: aqui, a história das ideias filosóficas sobre a educação; lá, correntes do pensamento filosófico sobre a educação; ou, então, o estudo das divisões mais ou menos claras do saber pedagógico, segundo orientações bastante clássicas do conhecimento filosófico: um pouco de epistemologia, outro tanto de axiologia e de ontologia, usadas para explicar o fenômeno educativo. Dessa forma, o aluno mais afortunado poderá compreender, com a ajuda de um mestre explicador, um
saber filosófico, histórico ou sistemático, sobre a educação. Aprenderá a distinguir, com as explicações que recebeu, escolas e orientações pedagógicas, períodos, conceitos e categorias, que habilmente relacionará às correntes de pensamento já instituídas. Para os menos afortunados, essas mesmas explicações funcionarão, muito mais simplesmente, como uma espécie de doutrinação educativa, que os infundirá, brutal ou delicadamente, da firme crença nos fins, nos valores e nos ideais que deverão passar a perseguir. Esses modos de ensinar a filosofia da educação não estão isentos de pressupostos sobre o significado e sentido de ensinar e aprender a filosofia, assim como sobre suas relações com a educação. Trata-se, basicamente, de transmitir um certo saber instituído, predeterminado, que permitirá uma compreensão mais “crítica” do fenômeno educacional ou, simplesmente, compreender a “verdadeira” missão da filosofia na educação. Nas versões mais aggiornadas, o saber filosófico toma a forma de conteúdos conceituais ou atitudinais que contribuirão para a aquisição das habilidades ou competências de pensamento crítico, por parte do (a)s futuro (a)s profissionais da educação.
Nesse horizonte, um texto como O mestre ignorante decerto não encontra posição de comodidade, mas enfrentará resistências e esquivanças.
Afinal, não é mais do que uma história, dirão alguns profissionais. Uma fábula, um conto, uma experiência. Que lugar poderá manter esta história objetarão certos eruditos, na longa galeria das tradições rigorosas de ensino, com seus métodos mais ou menos consolidados de transmissão de saber?
Possivelmente, entre uns e outros, haverá os que se disporão a admitir algum valor literário na narrativa de Rancière, considerando-a como uma bela história.
Dificilmente, porém, algum espaço lhe será reservado nas instituições onde se ensina formalmente a filosofia da educação. No mais, mesmo os que se atreverem a fazê-lo deverão arcar com o que advertia o próprio Rancière: não se trata de institucionalizar nada, inclusive porque

“jamais um partido, um governo, um exército, uma escola ou uma instituição emancipará uma única pessoa”. (2002, p. 142).

No entanto, é nesse confronto, no abismo entre duas formas opostas de entender a filosofia da educação que pretendo situar minha intervenção. Importa-me explorar em que sentido a leitura de O mestre ignorante pode se constituir em uma experiência formativa interessante, sobretudo para aqueles (as) que já abraçam, ou se preparam para abraçar o ofício de ensinar; e, ao fazê-lo, suponho que poderei contribuir também para problematizar o modo habitual de se entender a filosofia da educação, particularmente em nossas instituições universitárias.
De resto, se a empreitada supera de muito a questão puramente disciplinar, é porque o que está em jogo, quando se lê O mestre ignorante, é o próprio sentido que assume para nós, que trabalhamos em educação, o exercício do pensamento.
Assim, considero que um dos principais méritos da obra que Jacques Rancière dedicou à matéria está na graça e na vitalidade com que propõe uma forma renovadora de exercer a filosofia da educação. Nada mais, enfim, do que um exercício.
Pensamento vivo e em ato. Nada de esquemas, classificações, generalizações. Filosofia em ato, experiência de interrogação, irrenunciável, sobre a própria experiência. Exercício singular que dá lugar a um pensamento singular. Singular, como diferente e como comum, por ser a história de um mestre e não de um indivíduo, uma história cuja significação não reside nas particularidades de Jacotot, desse ou daquele mestre, senão de um mestre que encarna, em si mesmo, todo mestre que dele queira servir-se para se perguntar por que e para que ensina; e, o que é ainda talvez mais importante, para questionar-se que diabos está fazendo consigo mesmo e com os outros, a cada vez que se veste de mestre em uma sala de aula.

Por isso, como o exercício de um mestre que se interroga a si mesmo, a leitura de O mestre ignorante pode ser um belo trabalho de emancipação, em um dos sentidos que Rancière confere à palavra, em seu livro: forçar uma capacidade ignorada ou negada a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento.
Exercício emancipatório de leitura que nos força a pôr em questão o modo e o sentido com que ensinamos as forças que nos movem a fazê-lo, as apostas políticas que, conscientemente ou não, afirmamos em nossa prática. Emancipatório é o exercício, se nos permite, ao final das contas, de educar sem subestimar ninguém – começando por não subestimarmos a nós próprios.
De tal forma que, ainda que se possam distinguir em O mestre ignorante algumas teses de peso, substantivas (o princípio da igualdade das inteligências; o “existo, ergo penso”; a explicação como arte da distância; a relação entre vontade e inteligência; o estatuto político e filosófico da igualdade etc.), não reside aí o mais interessante da aposta de Rancière. Ao contrário, são essas teses polêmicas, sumamente discutíveis, de aceitação bastante difícil, em vista da forma ostensivamente radical e provocativa com que são expostas. Decididamente, esse livro não foi feito para suscitar acordos ou consensos. Seria estranhamente contraditório valorizar sua força explicadora.
Ao contrário, a potência de O mestre ignorante parece estar situada nos desacordos que supõe e provoca, no trabalho de pensamento que desencadeia como expressão solitária, inaudita, dissonante e, apesar de tudo, suficientemente forte para interrogar uma realidade que desconsidera suas principais proposições ou, no melhor dos casos, as ignora. A força da narrativa não está, portanto, na originalidade das teses que avança, senão na radicalidade da experiência que provoca.
Pois – admitamos de uma vez por todas – todos, em educação, alguns um pouco mais, outros um pouco menos, afirmamos o que Jacotot nega e desconsideramos o que mais valoriza. Partimos da desigualdade. Somos formados para explicar o que aprendemos (a desigualdade). Fomos explicados e, assim, explicamos. Acentuamos a desigualdade. Voltamos a explicar. Tudo, então, continua como dantes: não podemos, claro, sair do círculo do embrutecimento.
Seguimos explicando. Pela vida. Embrutecemos. Nos embrutecemos. Jacotot nos expõe a nosso contrário. Propicia (força?) um encontro com o que não praticamos e não valorizamos. E, por essa via, nos leva a voltar a pensar sobre o modo e sobre o sentido daquilo que fazemos. Não se trata, é claro, de “transformar” o modo como pensamos o ensinar e o aprender.
Tampouco está em questão deixar de fazer o que fazemos, para fazer o oposto. Mas, inversamente, interessa pensar por que essa forma de educação emancipadora se encontra nos antípodas daquilo que se tornou tão evidente em nossas teorias e nossas práticas. Importa pensar por que não pudemos pensar que estamos embrutecendo e nos embrutecendo. Contudo, por mais que definitivamente não seja o caso, aqui, de seguir os preceitos de um novo método, nem de copiar um modelo, aos poucos vai-se tornando impossível continuar pensando o que pensávamos e fazendo o que fazíamos.
Desse modo, a filosofia da educação se faz exercício que não explica, não legitima, não consolida. Escapa à tentação de constituir-se como lei e como verdade. Pelo contrário: dessacraliza, polemiza, interroga. Impede que ensinemos da forma como ensinávamos, que pensemos a educação da forma como a pensávamos, que sejamos os mesmos educadores que éramos. Permite-nos pensar, ser e ensinar de outro modo. Essa é, no meu entender, a força emancipadora de O mestre ignorante. Esse é seu valor filosófico e pedagógico: mergulhar o leitor em um círculo do qual só pode sair valendo-se de sua própria inteligência. Disruptor dos círculos do óbvio, do normal e do inquestionado que habita em nós, esse outro círculo faz da emancipação uma questão de sobrevivência.


A INFLEXÍVEL IGUALDADE DO EXERCÍCIO: O ANTI-SÓCRATES

Esse exercício de filosofia da educação tem como ponto inflexível, irrenunciável, a igualdade – princípio, opinião, pressuposto, algo que não tem valor de verdade, que não pode ser demonstrado, mas sem o que não pode se fundar, na perspectiva de Rancière, uma educação radicalmente diferente daquela dominante, e que segue a lógica da superioridade-inferioridade.
Para Rancière, quando a igualdade é colocada como objetivo, ou finalidade, e não como princípio, afirma-se a lógica desigualitária que a nega. Precisamente na relação com a igualdade define-se o caráter conservador, ou revolucionário de um (a) educador (a). Será liberador (a) aquele que, partindo da igualdade, a verifique e permita, assim, perceber a potência não inferior de toda inteligência. Qualquer outra relação com a igualdade que não seja a de princípio é, para Rancière, embrutecedora.
Dessa forma, a igualdade é, ao mesmo tempo, condição e limite para um modo de praticar a filosofia da educação: por um lado, é aquilo que, na ótica de Rancière, permite pensar filosoficamente a educação; mas é também aquilo sem o que não se pode pensar a educação como tal. A igualdade é o axioma do pensamento, seu fundo, o não-filosófico que abre espaço para a filosofia. Paradoxo da igualdade.
Talvez seja interessante apreciar o peso da figura de Sócrates nesse exercício. Sabemos o papel singular, fundador, paradoxal, de Sócrates em nossa tradição de filosofia da educação. Singular porque incomparável, fundador porque inaugural, paradoxal porque, sendo reconhecido por todos como o primeiro filósofo da educação, exercita uma filosofia da educação contrária a de seus próprios celebrantes.
A tentação de assimilar o mestre ignorante a um Sócrates modernizado é grande, fácil, imediata. Rancière arremete, no entanto, contra o ídolo, desfazendo-o política e filosoficamente. Não perdoa sua veia desigualitária. Reprova sua paixão pela superioridade e inferioridade.
Enfim, por trás de sua declaração de ignorância, Sócrates, o divino, dá fé ao oráculo: pensa que é o mais sábio, na pólis, e que sua tarefa consiste, justamente, em mostrar aos outros o pouco valor de seu saber, sobretudo quando comparado ao saber do próprio Sócrates. Sócrates não é um mestre ignorante; é um sábio mestre de sua ignorância. Pretende impor, como todos os mestres da tradição, seu saber aos demais. O modo como Sócrates oculta o caráter embrutecedor de seu saber o torna mais sofisticado e dissimulado. E, portanto, mais perigoso.
Todos os que se entretêm com Sócrates, nos Diálogos de Platão, têm algo – o mesmo – a aprender. Não importa se, de fato, o diálogo chega a um saber conclusivo ou a uma aporia: todos devem aprender que aprender com a filosofia, com Sócrates, significa deixar de saber o que se pensava saber; todos devem saber que, para aprender o saber filosófico, é preciso acompanhar o caminho do mestre, deixar-se levar por ali onde o outro, aquele que sabe, deseja ir.
O escravo do Mênon é emblemático: não só não aprende nada por si, mas aprende que, para aprender, necessita de alguém que o leve pelas mãos: alguém como Sócrates, que bem sabe aquilo que ele, de todo modo, deveria aprender. O escravo também aprende sua ignorância, e a sabedoria do mestre: aprende que, para aprender, deve seguir outra inteligência, a do mestre. Assim, o diálogo com Sócrates aprofunda sua escravidão. Reforça-a, embrutecendo-no.
Mas, o que é ainda pior, Sócrates esconde sua paixão embrutecedora debaixo de uma aparência libertadora. Seu disfarce, suas máscaras, a maneira como oculta sua paixão desigualitária o tornam mais perigoso. Contudo, para qualquer observador interessado na emancipação, fica claro que Sócrates embrutece: não pergunta o que ignora, para saber e para instruir-se, mas sempre pergunta aquilo que sabe, para que os outros “recordem” o que ele já sabe e, sobretudo, para que todos verifiquem que somente ele detém o saber que vale alguma coisa. Sacrílego saber da ignorância. Dizia que nunca buscou ensinar, mas sempre soube, de antemão, aquilo que os outros deveriam saber. Indigno saber da ignorância. Amante do saber da ignorância pretendeu que todos amassem seu saber. Perverso uso da ignorância. Seguidor do oráculo, valorizou unicamente o saber que legitimava seu próprio saber. Embrutecedora política do desprezo.

AS LIÇÕES DE UMA LEITURA

Ainda essa vez, Rancière nos remete ao que queremos ou não queremos ser, como mestres.
Pois, que mestre jamais pretendeu ser como Sócrates?
Quem jamais se deleitou com sua mentirosa ignorância?
Quem nunca quis vestir o mesmo disfarce do perguntador que não pergunta?
Ainda essa vez, situando-se nos antípodas do sentido comum pedagógico, Rancière nos faz mergulhar em um círculo que somente podemos romper por nós.
Primeira lição (filosófica) do ignorante: o mais natural, evidente e aceito pedagógica e socialmente acaba por se mostrar o mais problemático filosoficamente. Ao mesmo tempo em que O mestre ignorante nos põe face ao incômodo de perceber nosso contrário, problematizando nossas obviedades, acompanha-nos na abertura de sentido que propicia a percepção do paradoxo, permitindo-nos pensar o caráter constitutivamente paradoxal do ato pedagógico. Pois Jacotot nos mostra, por exemplo, como a ignorância é, a uma só vez, necessária e impossível para o ensinar, do mesmo modo que o axioma igualitário e a emancipação são necessários e impossíveis para a ordem social. Algo que só pode ensinar quem nada tem a ensinar. Porque ensinar de verdade, diria Rancière, não pode significar nada que tenha a ver com transmitir, senão com permitir que o outro se emancipe.
Segunda lição (educacional) do ignorante: somente pelo paradoxo, entranhados no lodo paradoxal, podemos encontrar algum sentido na educação. Finalmente, a lição da emancipação de um mestre que se emancipa a si próprio, que ensina com seu próprio método, isso é, sem método. Que ensina também que a emancipação não tem a ver com um conteúdo, uma doutrina ou um conhecimento. Que ninguém pode emancipar ninguém. Um mestre que escreve sua própria história, para que os outros a leiam. E outro mestre lê a história, reflete sobre ela e a relata para que outros (as) mestres a pensem. E se emancipem, na contradição e no paradoxo. Afinal, um ser humano pode o que pode qualquer ser humano.
Terceira lição (política) do mestre ignorante: só há uma única educação que vale a pena – a que emancipa (sem emancipar). Quem não deixa que os (as) outros (as) se emancipem, embrutece.
Três lições para a filosofia, à educação e a política. Lição de política para a filosofia da educação. Lição de filosofia para a política da educação. Lição de educação para a política da filosofia. Lições de uma experiência de filosofia da educação.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (Série: Educação. Experiência e sentido)



ARTIGO 04

ÉTICA E ADMINISTRAÇÃO:
CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO
SOBRE OS DESAFIOS DA ÉTICA NO
MUNDO DOS NEGÓCIOS[5]

Amadeu de Farias Cavalcante Júnior
RESUMO: A ética tem se colocado como um eixo fundamental para que o homem possa conviver bem em sociedade, dentro de parâmetros voltados para o dever de agir de acordo com o bem comum entre os homens, e em concordância com os valores morais que prezam pela ação virtuosa preocupada com o bem entre os diferentes. Mesmo sabendo que a reflexão ética se apropria dos valores morais considerados bons, no sentido de uma ciência do comportamento moral do homem em sociedade, admitimos que a dificuldade de se pensar a ética no mundo dos negócios está no fato de que o mundo da administração em organizações econômicas e complexas, muitas vezes exige posturas do administrador que possam dar conta de enfrentar os desafios colocados por uma ação pautada na “ética convencional”, e de uma ação pautada nas exigências do mundo dos negócios, ou uma “ética dos negócios”.

PALAVRAS-CHAVE: Ética profissional, ética nos negócios, ética da responsabilidade, administração.


INTRODUÇÃO

O senso comum propaga que nos dias em que vivemos não existem mais tantas pessoas crédulas pelos princípios ético-morais, pelas circunstâncias que levam os homens nas condições da sociedade contemporânea. A generalização, porém, parece absurda. Por quê? Porque faz da venalidade uma linha congênita dos homens. A razão disso, entre outras, se deve a fatores que demonstram o quanto os agentes sociais ficam expostos a ações sem idoneidade, ou de suspeição, ou mesmo de mecanismos sociais e econômicos que seduzem à corrupção. Isto vem demonstrando o quanto nossas instituições públicas e privadas, bem como empresas de variadas espécies, são colocadas diante do crivo da avaliação por membros externos e internos, no que remete à aceitação ou aos desvios das normas considera dos como padrões sociais de condutas morais e éticas. De fato, em contextos de competições aguçados pela falta de empregos, pela ganância do lucro imediato, pela questão do poder econômico, e pelas condições “sufocantes” da economia e da necessidade de negociar com agentes que nem sempre se pautam pelas exigências éticas, enfim, podemos dizer que em várias situações a consciência dos administradores pode ser sempre colocada à prova.
A discussão que se tem propalado nos meios acadêmicos e na literatura recente sobre o assunto não tem deixado de fora o problema da ética e suas exigências pela boa conduta, e nem a difícil reconciliação destas exigências no mundo do mercado. Os conflitos se dão quando os administradores se veem encurralados pelas necessidades do mercado e as consequências que certas decisões podem causar na vida de quem participa da organização empresarial, sejam por meio dos seus membros diretos como empregados, fornecedores, outras empresas que mantêm relações comerciais, empresários; ou indiretos, tais como clientes, e a sociedade beneficiada por determinado produto.
O cerne da discussão ética empresarial tem tomado ênfase e se espalhado nos currículos das faculdades de administração no Brasil e no mundo, pois, como vem demonstrando os estudiosos do assunto (MOREIRA, 2002; NASH, 1993; SROUR, 2000; SINGER, 1998; SÁNCHES, 1998), as práticas empresariais passaram a ser vistas de forma mais questionável, bem como as práticas e decisões de administradores que se escondem por trás das empresas. Tais práticas podem ser assim enumeradas, para título de exemplificação: subornos para dirigir licitações públicas; desvios de somas altas do erário público; sonegação fiscal; espionagem industrial e econômica; falsificação de medicamentos, de alimentos, roupas; “doações” para financiar campanhas políticas a candidatos que ofereçam alguma contrapartida a empresários; exploração do trabalho infantil ou assalariado; falta de incorporação da qualidade real nos produtos apresentados à população; não apresentar ou ocultar informações que dizem respeito à saúde pública da sociedade e danos ambientais causados, segundo diz Srour (2000, p.24), apontam apenas para um dos problemas comuns da administração empresarial, ao qual tem sido vista pelas lentes da sociedade de forma mais moralista, levando inclusive empresas a fecharem suas portas por causa de danos surtidos no âmbito da opinião pública.

POR QUE A EXIGÊNCIA DA ÉTICA NOS NEGÓCIOS ATUALMENTE?

Como podem ser compreendidas de forma crítica estas questões que dizem respeito ao surgimento da discussão sobre a ética, ou da ética empresarial? Tais problemas podem ser vistos como partes de exigências que se tem feito por agências de controles sociais, tais como a mídia, e pela necessidade de que os negócios feitos pelas iniciativas de administradores visam uma postura ética mais exigente em função da necessidade de transparência na tomada de decisões, e da qualidade dos produtos, dentro do contexto de um mercado mais exigente. Mas não é só isto, é preciso entender o “jogo do poder” e das relações morais que se ocultam, muitas vezes, para que se possam dar margens a mecanismos funcionais que mantenham as empresas sobrevivendo num mundo competitivo. É como se propalasse uma lei do mais forte num mundo dos negócios em que, para não cairmos na tentação de sermos ingênuos, as condutas morais por si só não bastam para justificar a complexidade da competição no mercado. Para aqueles administradores que ainda se pautam por ações idôneas, os discursos dirigidos podem se pautar na ética, mas as práticas mostram que [...] os praticantes de algumas dessas ações sentem-se justificados pela moral do oportunismo, de caráter egoísta e parasitário, que vige de maneira oficiosa [...]. Mas, é indispensável ressaltá-lo, tais agentes não assumem publicamente os atos que praticam nem se vangloriam deles. O que isso sugere? Que eles têm consciência da natureza clandestina do que fazem, apesar de dispor de um arsenal de racionalizações para persistir em sua conduta. Vale dizer, as morais são formas de legitimar decisões e ações, porque operam como discursos de justificação. (SROUR, 2000, p.25).
Desse modo, segundo o autor, pagar a conta ao médico sem “recibo” para sonegar imposto, ou como no caso do administrador que gesta seu negócio sem o uso de notas fiscais para escapar do fisco; ou o suborno de um guarda; ou como no comércio do mercado paralelo do dólar que, apesar de ser considerado imoral (segundo a moral da integridade), é vista como legítima pela moral oficiosa do oportunismo. Administrar empresas exige estar atento aos problemas gerados pelas exigências de condutas morais na sociedade. É por isto que nem tudo pode ser tão transparente, no sentido de que o público possa fazer uma avaliação moralista e injusta, e nem tanto oculta, a ponto de não esclarecer sobre os problemas relativos aos produtos vendidos à sociedade. A ética dos negócios se situa dentro de exigências demarcadas pela opinião moral social e pela compressão da competitividade.
Por diversas razões, que vão desde o problema que envolve a eterna sede pela busca do lucro e a ganância, até os códigos corporativos de empresas que só sustentam suas próprias necessidades de se manter no mercado a qualquer custo, pensamos que a administração e a moralidade, a ética e os negócios, têm tomado o aspecto de contradição e de distâncias em relação aos problemas éticos. No mundo dos negócios, o administrador se vê pressionado pela necessidade de negociar, juntamente com as exigências econômicas da empresa e da sociedade. Muitos podem estar convencidos de que devem guiar-se por altos padrões éticos, mesmo sabendo que outros não estão interessados em conciliar ética e necessidades econômicas. Há administradores que julgam que a conduta moralmente correta se restringe a um plano de ação meramente pessoal, enquanto outros acreditam na irreconciliação, uma vez que defendem que é moralmente aceitável mentir nos negócios justificando a sobrevivência econômica.
Os desafios do mercado atual, as falhas éticas, os desvios de condutas nas empresas, colocam dilemas éticos que exigem uma mudança de postura de acordo com certa noção de “integridade”, em concomitância com uma “ética dos negócios”, pressionados por mudanças no mundo do mercado e exigências ocorridas na sociedade civil organizada. Como diz Nash (1993, p.5), o administrador moderno, junto com a empresa moderna, devem cultivar valores mais “altruístas” no sentido de atualizar valores que preservem o “bem comum” nas suas decisões:

“A integridade nos negócios hoje exige capacidades incrivelmente integrativas; o poder de manter junta uma infinidade de valores importantes e quase sempre conflitantes; e exige o poder de colocar na mesma dimensão a moralidade pessoal e as preocupações gerenciais. Nenhum administrador pode se dar ao luxo, do ponto de vista econômico ou moral, de manter suas noções morais em compartimento fechado...”

Todo administrador enfrenta o desafio de ter que tomar decisões que muitas vezes escapam ao seu controle total, mas que não deixam de ser problemáticas. Por isso, suas escolhas podem afetar direta ou indiretamente membros internos, ou a sociedade. Suas decisões devem estar alinhadas a mudanças e exigências ocorridas na sociedade, sintonizadas com uma série de rigores legislativos que tendem a punir empresas que tomam decisões danosas. Neste aspecto, a “ética nos negócios” aparece dentro de um contexto demarcado no capitalismo atual nas últimas décadas, e não porque houve uma necessidade de cada administrador agir de acordo com o “bom mocismo”. O que é a ética nos negócios? Segundo Nash (1993, p.6):

 “Ética nos negócios é o estudo da forma pelo qual normas morais pessoais se aplicam às atividades e aos objetivos da empresa comercial. Não se trata de um padrão moral separado, mas do estudo de como o contexto dos negócios cria problemas próprios e exclusivos à pessoa moral que atua como um gerente desse sistema”.

A mudança de preocupações na ética nos negócios atesta a mudança ocorrida nas formas macro sociais do capitalismo recente. Segundo Nash (1993, p.7-22), os contextos das décadas de 60 a 90 são marcantes para a mudança de percepção das empresas e das relações comerciais sobre a questão da ética nas relações comerciais. No período que abarca a década de 60, marcado pela guerra do Vietnã, levantaram indignação da opinião pública o desperdício com a indústria bélica e seu crescente poder de destruição de massa e o potencial de destrutividade das multinacionais no exterior. Fruto da uniformização cultural advinda dessas relações fizeram com que os administradores enfrentassem problemas no sentido de que não só as relações econômicas estavam se expandindo para exploração de mercados com mão de obra mais barata, como enfrentaram questões relativas aos danos ambientais e ao controle da poluição ambiental, e suas respectivas exigências legislativas ocasionadas pela necessidade de reformas da consciência social.
Nos anos 70, continua a autora, o corporativismo de grandes e médias empresas passou a ser vigiado em função de uma consciência cada vez mais acentuada por causa de escândalos públicos e subornos de toda ordem. Os problemas internos de uma empresa capitalista, junto com suas contradições, antes eram vistos apenas pelos empregados ou por analistas sindicalizados. O escândalo de casos como o Watergate, nos EUA, expondo a corrupção do aparelho público, fraturaram a confiança nas administrações de negócios. Os administradores se veem pressionados a rever seus códigos internos de condutas morais e éticas, e passaram a assumir as exigências por transparências nas negociações devido ao crescente movimento de consumidores exigentes de uma nova conduta de empresas que agiam de forma ilícita, enganando ou causando danos sociais ao desenvolvimento, ou agindo de forma ideológica por meio de propagandas, de embalagens, de rótulos, visando ludibriar o público.
Os temas relativos à defesa do consumidor e as diferenças culturais no exterior continuaram a dominar a ética nos negócios na primeira metade da década de 80. Isto exigiu mudanças na mentalidade das empresas, o que deu outro perfil ao capitalismo em expansão. Segundo Nash (1993, p.8), a preocupação central da moral coletiva centraliza seu foco de atenção em torno da “capacidade moral dos indivíduos”. Os conflitos de interesses, o comportamento ganancioso e individualista de administradores que lesavam interesses públicos, aquisições ilegais de bens junto com a mentira, vieram à tona e romperam o véu ou o mito da administração e do administrador como portadores de caráter de impessoalidade que cercava as discussões da ética nos negócios.
A questão da ética nos anos 90 foi uma busca por um conjunto de premissas gerenciais que pudessem estimular o administrador a uma busca e valorização pela integridade pessoal, uma vez que a empresa pode ser censurada por isso, e dando uma resposta aos outros de acordo com o contexto de competitividade empresarial. Neste contexto, surge a discussão em torno de uma ética que possa enfrentar as convulsões da economia, onde o administrador possa enfrentar os dilemas da ética e da economia e reconciliar com questões sociais.
A “ética convencionada”, como resposta a todos os problemas empresariais, fornece uma combinação entre a motivação do lucro e o espírito altruísta embebido pela necessidade de cooperação e confiança, e possui dois aspectos fundamentais:
Primeiro, não percebe o lucro e outros retornos sociais como objetivos absolutos pelo administrador;
Segundo, aborda as relações empresariais como questão de relacionamento com o público, priorizando uma visão humanista.
A ética nos negócios ganha mais credibilidade quando se projeta sua “imagem” de acordo com as exigências sociais do que com a natureza do capitalismo (NASH, 1993, p.19). Como resume Nash (1993), o impacto dessas mudanças não é apenas econômico. Elas significam perigo para a capacidade moral das empresas e dos que nelas participam. Não atender certas exigências se torna danoso para a imagem social das empresas. A tecnologia e a complexidade financeira, as fraudes recorrentes, as novas preocupações ambientais e legislações mais rígidas, a educação de consumidores esclarecidos pela qualidade dos produtos, o turbilhão das economias e a competitividade que chega a fechar empresas e corporações, e a desmoralizar administradores, enfim, sobretudo o fator de confiança ao quais os consumidores chegam a depositar nas empresas avaliando suas funções do ponto de vista moral, tudo isto somado a outras questões dão origem a uma necessidade de discussão e de efetivação da “ética nos negócios” sobre o risco de serem penalizados por desvios cometidos. A ética nos negócios é tão fundamental para a sobrevivência de empresas pela simples necessidade de se autopreservarem no mundo das transações comerciais.


A SEDE PELA ÉTICA

A sede pela ética se justifica para os administradores devido aos enfrentamentos complexos que suas escolhas e decisões podem causar. O trabalho do administrador está sujeito, sem dúvida, a avaliações que tendem a julgá-lo moralmente. Se sua postura moral não estiver de acordo com o que a opinião pública considera como padrão de conduta moral legítima, então a vida de seu empreendimento estará comprometida, mesmo que isto se faça por meio de uma mídia que denuncia sem fundamentos e injustamente uma causa, como foi o caso que ocorreu com os administradores de uma escola. Vejamos:
Basta citar o famoso caso da Escola Base, no Bairro da Aclimação em São Paulo, em março de 1994, quando os donos do estabelecimento foram acusados, de maneira infundada, de estarem envolvidos em práticas de abuso sexual de crianças (...).
 Mesmo sem provas concretas, o delegado e duas mães de aluno passaram informações à mídia que a divulgou sem prévia apuração da veracidade dos fatos. Em razão da exploração sensacionalista das denúncias, a repercussão foi devastadora. Os acusados chegaram a temer linchamento, apesar de se declararem inocentes (...). Três meses depois, as novas investigações provaram que tudo não passou de uma série de erros das mães, do delegado e da imprensa, que noticiou a versão que lhe foi passada sem questioná-la, chegando até a incentivar a violência física contra os acusados. A casa em que funcionava a escola foi depredada na época das denúncias; os indiciados perderam seu negócio e tiveram de reformar o imóvel que era alugado, tomando dinheiro emprestado. Por fim, com as reputações destroçadas, não conseguiram reconstruir suas vidas cinco anos depois do episódio, apesar do fato de, em dezembro de 1999, o Tribunal de Justiça de São Paulo ter fixado uma indenização de cem mil reais por dano moral para cada uma das vítimas (a serem acrescidos de juros e correção monetária). O Tribunal também decidiu que os danos materiais seriam ressarcidos. (in SROUR, 2000, p.23).
A ética nos negócios empresariais não é imune, pois carrega um peso muito vasto no poder que certas decisões têm der causar impactos que irradiam seus efeitos à distância. Daí a preocupação das empresas pela formação ética de seus funcionários. Em termos práticos, afetam o que se chama de stakeholders (SROUR, 2000, p.41), ou seja, os agentes direta e indiretamente ligados às decisões organizacionais ou de gestores administrativos. São eles, na linha interna: trabalhadores, gestores, proprietários; e na externa: clientes, fornecedores, prestadores de serviço, autoridades governamentais, entidades da sociedade civil, tais como movimentos sociais de defesa dos direitos dos consumidores, sindicatos, meios de comunicação, entre outros. Quando falamos em contextos sociais de riscos para as empresas e para a tomada de decisões pelos administradores estamos nos referindo aos encargos e ônus da culpa que precisam assumir por algo visto como antiético. Isto representa uma forma de mostrar que a empresa tem lealdade com os clientes, e um nítido espaço para a “ética nos negócios se justificarem”.
No caso de uma administradora de recursos de terceiros, como uma corretora ou banco, como administrar os conflitos financeiros entre esta e os clientes? É claro que em função de interesses particulares as informações sigilosas dos clientes podem terminar nas mãos de administradores em proveito próprio. O sigilo se estabelece pela “Muralha da China” que, segundo Srour (2000, p.37), evita a invasão nas informações do cliente, isolam informações públicas das privadas, estabelecem barreiras tecnológicas e físicas, dividindo departamentos e proibindo acessos, criando dispositivos de vigilância dos próprios funcionários, criando departamentos de fiscalização com autonomia para controlar saltos sobre a “muralha”. A lealdade é devida aos clientes e investidores, mostrando que a ética nos negócios tem também a nítida cautela pela preservação de sua permanência num mundo exigente de segurança e onde o “poder do mercado” pode detonar resultados negativos do ponto de vista econômico e moral.
A ética empresarial, como toda moral, é historicamente compreendida de acordo com sua função no mundo, pressionada por outros valores regidos pelo mercado. Neste aspecto, quando uma administração assume uma postura de vigilância interna de seus funcionários, em função da ética nos negócios, é difícil imaginar que ela tome partido do “bom-mocismo”, pois como se colocam em termos políticos e sociológicos, “é mais crível aceitar que ela tenha conjugado seu credo organizacional — que considera a empresa responsável pelos clientes, empregados, comunidade e acionistas — com uma análise estratégica da relação de forças no mercado” (SROUR, 2000, p.42).
Fica mais fácil imaginar que a “ética nos negócios”, pressionada pelo mercado e por transformações ocorridas no seio social, tem sido fruto de um contexto histórico bem demarcado e de uma dinâmica social precisa, conforme dissemos até aqui. Neste sentido, o credo organizacional de administradores e de empresas se viu tomado pela necessidade de se voltar para uma nova perspectiva social, que criou a mentalidade da “responsabilidade social”, a busca pela formação de padrões de condutas éticas de seus funcionários (mesmo que seja apenas como discurso) e a introdução de mecanismos que prezam pela valorização da opinião pública sobre os produtos da empresa.
A bem da verdade, em ambientes competitivos, as empresas têm uma imagem a resguardar, uma reputação e uma marca. A ampliação dos direitos deu condições para que a sociedade reunisse elementos para se mobilizar e retaliar empresas socialmente vistas como irresponsáveis e inidôneas. A cidadania organizada e educada, associando a isso o crescente custo da vida social, exige uma postura dos dirigentes e administradores para agirem de forma mais responsável. Neste aspecto, enveredamos nesta discussão a fim de mostrar como se situa a mudança de mentalidade de uma ética empresarial meramente preocupada com os interesses próprios pelo lucro e a eficiência, e passamos a entender que as mudanças ocorridas nas esferas sociais mais amplas exigiram uma transformação da postura em torno da ética empresarial.
Como diz o estudo da professora de administração Laura Nash (1993), podemos perceber uma reflexão nesse campo, que tem discutido que os objetivos das empresas devem mudar suas condutas para uma ética mais responsável com o social, definindo objetivos que possam transcender a mera funcionalidade dos negócios. Segundo diz Nash (1993, p.24-25), “as declarações de objetivos empresarias é, em sua natureza, funcional e mais do que ética”, ou que as empresas buscam nos seus negócios apenas a “excelência, sem nunca definir o objetivo geral que se visa com tais atividades”, pois é preciso entender a atividade da administração e da empresa como “uma entidade social... uma organização de pessoas onde as ações de uns têm efeito sobre o bem-estar e os direitos dos outros”. Em outros termos, estas exigências têm refletido mudanças exigidas pela sociedade civil como possibilidade de fazer “política pela ética” e viabilizar aos empresários posturas éticas nos seus negócios, bem como posturas morais das empresas por meio de intervenção social (NASH, 2000, p.43). Vamos simplificar a questão mostrando no fluxograma abaixo, em que as agências de controle (PROCON, organizações sociais, tribunais de justiça, leis ambientais, centros de vigilâncias sanitárias, ONGs, mídia, entre outros) efetuam um trabalho de pressão política por uma ética nos negócios.

A NECESSIDADE DA ÉTICA: O MUNDO NÃO GIRA SOMENTE EM TORNO DE NÓS

Como vivemos em permanente contato com as pessoas, envolvidos por costumes e tradições culturais e morais quase sempre presentes em nossas convicções, e pontos de vista bastante variados, as questões morais escondem-se em muitas decisões e ações do cotidiano empresarial. Como em qualquer outro meio, no mundo das negociações e do trabalho, envolvendo relações que exigem um cumprimento razoável de valores éticos e morais, não é sem fundamento que os discursos de muitas iniciativas empresariais têm evocado a imagem das empresas afinadas com as exigências do mundo da ética nos negócios, desejando que funcionários e clientes possam estar em concordância com valores defendidos, como a probidade, a honra, o compromisso, a decência, a retidão, a licitude, o respeito e a verdade. Isso tem soado como expressão da ética empresarial sintonizada com os costumes e a moral vigente, tal como exigida historicamente pelas agências de controles sociais.
Nas transações que seguem importâncias econômicas, é natural que os interesses egoístas possam prevalecer como desvio de conduta, mas que passam a serem moralmente reprováveis quando se tornam públicas.
Neste sentido, o que estuda a ética, e, sobretudo, a ética empresarial? A ética tem servido como uma ciência prática, segundo a definição do filósofo Aristóteles, que foi formulada como reflexão sobre o comportamento virtuoso ou não, ético ou não, dos agentes sociais que adotam padrões de condutas morais segundo normas sociais convencionadas como boas ou más. Ela serve também para estudar as normas morais históricas. E o que são as normas morais que pautam comportamentos dos indivíduos? São códigos formalizados, expressam valores; o conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social dada; ou os discursos que são internamente coerentes com os princípios e propósitos os quais visam se tornar socialmente validados, e ao mesmo tempo, como aqueles meios que propiciam aos indivíduos se comportarem e se conduzirem a partir de determinadas formas diante de outros e mediante uma rede de relações sociais (SÁNCHES, 1993, p.24).

Defesa Pressão Política pela Ética nos Negócios

Sociedade civil organizada

 Mídia, Tribunais, Legislação, Movimentos Sociais, Ag. De defesa




Poder de Exigência
Percepção das estratégias dessa lógica.

Aderem ao comportamento social responsável: a Ética nos Negócios converte-se em estratégia empresarial e profissional.

Por isso, a ética visa também fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral; com que propósito? Reprovando aqueles comportamentos morais que não tomam o partido de justiça e do que é socialmente bom para o homem; ou refletindo sobre as amarras que fazem os agentes sociais ficarem presos ao egoísmo ou àquilo que faz com que o indivíduo não se importe com os outros. Cabe-nos estabelecer uma distinção entre o que é da competência da ética e o que é da competência da moral. Como diz Sánches (1993, p.7) “à respeito da diferença dos problemas prático-morais, os éticos são caracterizados pela sua generalidade”, ou seja, se na vida real o indivíduo se depara com desafios e obstáculos, que são práticos, então deverá resolver por si mesmo, pela via moral, como diz Sánches, e com a ajuda das normas sociais. Já o problema sobre como agir diante de determinada situação em que lhe exigem que faça uma boa ação, isto diz respeito a uma questão moralmente valiosa do ponto de vista dos valores éticos convencionalmente aceitos pela sociedade, pois a ética fundamenta o que é bom.
É claro que cair na teoria do relativismo ético é perigoso, no sentido de admitir que devemos aceitar que cada grupo social tem suas próprias normas; ou no sentido de que a sociedade deve aceitar determinadas formas de comportamentos sociais como éticos e como valores universais. O exemplo disso é o caso do grupo dos criminosos. Estes possuem suas próprias normas sociais, e suas próprias regras que regem o comportamento moral de quem envereda nos caminhos do crime. Portanto, para esse tipo de comportamento moral, a ética estabelece formas de compreender o que é permitido ou proibido e ainda nos ajuda a compreender que nem todas as formas de obediência às normas sociais são fundamentadas do ponto de vista ético. Os nazistas eram obedientes demais ao Estado Nazista alemão, e, no entanto, suas atitudes “justificadas”, foram consideradas um crime. A ética busca mostrar qual é a verdadeira finalidade (“boa” ou “má”), enquanto possui o caráter de pensar o comportamento moral no plano teórico-ético, ou universal (SÁNCHES, 1993, p.8).
Podemos então mostrar que o contexto da “ética dos negócios” segue os mesmos pressupostos da questão teórica da ética como colocamos acima: o objeto da ética empresarial visa estudar, a partir de contextos sociais bem demarcados e distintos, aquelas formas de comportamentos morais que pautam as morais empresariais. A importância dessa preocupação, que tem aparecido nos últimos anos sobre a necessidade da ética dentro do mundo empresarial, seja na forma de formação de funcionários ou na forma presencial de palestras e de reprovações a atitudes inconcebíveis e danosas, reporta à questão já apontada aqui antes: a preocupação com a repercussão social e moral que certos problemas de decisões acarretam na administração de bens e negócios.
A reflexão ética coloca questões profundas e de caráter humanista que visam estabelecer o consenso de que cada indivíduo define para si o que é o bem, fundado no pressuposto de que o respeito ao outro e a não violabilidade de seus direitos é uma regra universal do humanismo ético, ao qual deve se sobressair sobre os meros interesses privados dos que acham que o mundo gira em torno de si e de seus próprios interesses.
No centro de muitas discussões sobre a problemática relativa a dilemas éticos e morais, em que as decisões de alguns podem surtir efeitos consequentes sobre o todo, podemos encontrar hoje em discussão no plano acadêmico da administração a pauta da reflexão ética preocupada com os efeitos práticos das decisões, vinculadas a questionamentos sobre o que fazer e como proceder em situações adversas, ou como se comportar diante de incongruências dos negócios. Estas preocupações se resumem a uma perspectiva do utilitarismo, o qual determina que as decisões devam conduzir a provocar o máximo de bem aos envolvidos, sobrepondo o bem a tudo, principalmente em relação a alguns indivíduos (critério da eficácia); e o da finalidade, que determina que a bondade dos fins justifique o uso dos meios, mesmo que em certas circunstâncias se use a mentira (em sua máxima, em que coloca “que se alcancem os objetivos, custe o que custar”). No cerne destas duas correntes éticas, empreendidas nas relações da ética nos negócios, encontramos a separação que o sociólogo alemão Max Weber encontrou para explicar o fenômeno do dualismo ético no plano do mundo das instituições e das relações impessoais modernas racionalizadas e administradas: de um lado, uma ética da convicção; e por outro, uma ética da responsabilidade. Para compreendermos esta questão, comecemos por um exemplo: um administrador enfrenta continuamente conflitos internos entre aquilo que deveria fazer enquanto representante leal da empresa e aquilo que um indivíduo, amigo, consumidor ou cidadão pensaria ser certo. Parafraseando a conhecida piada do embaixador (que mente no exterior pelo seu país), um executivo é aquele que mente no exterior pela sua empresa. Uma das responsabilidades mais difíceis do executivo ético é manter em equilíbrio, ou mesmo integradas, entre as perspectivas não empresariais e as obrigações gerenciais.
Uma amiga e subordinada procurou-o para pedir, confidencialmente, um conselho. Ela acabou de receber uma oferta de emprego de outra empresa e quer saber o que ele acha que ela deve fazer, sabendo que sua empresa recebeu um aviso de que só tem três meses de vida: ou melhora o desempenho ou vai ser extinta. A colaboração da amiga nesse projeto é crucial, dada sua competência. Mas, se explicar os fatos, ou seja, que há grandes chances de a empresa fechar e não pagar os empregados, provavelmente vai perdê-la. Mesmo que ela fique, a informação pode vazar e desmoralizar o restante da equipe. Ele deve contar à sua amiga os fatos, sabendo que isto diz respeito ao dilema que ela enfrentará em fazer o bem a si ou para a empresa? (NASH, 1993, p.192).
O dilema colocado pela autora demonstra um entre outros desafios apresentados de forma prática pelas necessidades do mundo dos negócios, principalmente quando apontam para a sobrevivência da empresa. Percebemos que entre ter que visar o bem da pessoa que competentemente produziu bons resultados na empresa e ter que “mentir” para que a funcionária não saiba o que está ocorrendo, e para ter a esperança de salvar os negócios, o administrador se vê forçado pelas circunstâncias, tendo que tomar a difícil decisão.
Sua opção pelo uso circunstancial da “mentira” nos remete a algo comum nas relações sociais e econômicas e ao qual conduz a conflitos de ordem ética e moral. Se mentir é um mal para as relações sociais humanas em geral, cabe dizer que nem toda mentira é perniciosa, como foi feita muitas vezes em que as famílias contrárias ao antissemitismo nazista escondiam os judeus nos porões de suas casas, mentindo para os soldados da SS sobre o paradeiro de judeus em suas casas. Eles estavam claramente contrariando os nazistas em dizer a “verdade”. Mas, como diz o filósofo alemão Immanuel Kant, mentir não é o melhor meio para se chegar a um fim ético, ou como diz o ditado popular que “uma mentira dita muitas vezes pode se tornar uma verdade”.
Para Kant, se para cada vez que passarmos por necessidades de curto prazo tivermos que mentir, então o risco para a os homens, de forma geral, estaria em que a “mentira” poderia ser utilizada como o recurso justificado para tirar os homens do sufoco ou do apuro em que se encontram conforme as circunstâncias, podendo inclusive ser perigosamente transformado como lei geral e universalmente aceito. As consequências, segundo Kant, também estariam ligadas ao fato de que as ações e os comportamentos morais daqueles que mentem correriam o risco de serem sempre desacreditados no futuro, pois sempre poderiam ver o indivíduo como potencialmente mentiroso, ou as pessoas poderiam retribuir ao indivíduo mentiroso com a mesma moeda da mentira, como forma de pagar as injustiças cometidas. Segundo Kant, a vontade do homem ao agir moralmente em sociedade deve buscar ser sempre boa, não apenas para si, mas para os outros de forma universal. Vejamos o que diz Kant tem sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes:
Entretanto, para resolver de maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa é conforme ao dever [de agir em função do bem, citação nossa], preciso só perguntar a mim mesmo: Ficaria eu satisfeito de ver minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: - Toda a gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal lei, não poderia propriamente haver já promessa alguma, porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às minhas futuras ações a pessoas que não acreditariam na minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte, a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma, necessariamente. (KANT, 1975, p.116).
Os dispositivos que compõem os códigos morais traduzem valores, principalmente normas e ideais, princípios e regras que vão sendo aplicados pelos agentes em situações concretas. Mas, acreditamos que nem sempre é possível seguir o que ditam regras, pois as decisões mais importantes, seja de um administrador, seja de um profissional de outra natureza, não encontram suas respostas prontas em receituários, fórmulas, prescrições que dizem o que deve ou não ser feito. Cabe à capacidade humana e aos estratagemas da inteligência e dos valores éticos possíveis, o poder de agir de acordo com as decisões a tomar. O problema humano ético é o da escolha, muitas vezes entre agir para atingir o bem comum, ou de agir às escusas para garantir uma boa resolução para conflitos no mundo dos negócios humanos. A economia coloca o administrador muitas vezes diante do dilema de ter que tomar uma decisão ética, guiando seu comportamento moral e de seus funcionários dessa forma, ou agindo às ocultas ou parcialmente para alcançar os fins do lucro.
O dilema colocado acima sobre a relação da decisão do administrador com sua amiga funcionária e as necessidades da empresa, segundo o contexto da ética empresarial, comumente é pensado de forma bipolar mediante duas éticas que se confrontam no cotidiano para resolver emergências econômicas. Uma é a ética da convicção, ao qual presume simplificadamente a máxima que diz: “cumpra suas obrigações custe o que custar”, e que pressupõe como princípio o respeito ao dever ou “respeite as regras haja o que houver”. Talvez possamos discordar aqui da visão colocada por muitos autores sobre esta ética, pois acreditamos que é dogmático o exercício da obediência a regras, uma vez que a ética e o sujeito ético precisam agir e tomar decisões que são flexíveis e inconstantes. Para a ética da responsabilidade, o que importa é que os agentes possam avaliar os efeitos e as consequências previsíveis de suas ações, buscando conciliar os objetivos da empresa para fins que sejam vistos como bons. A finalidade de agir em função do que é visto como “bom” pode justificar que se tome partido de ações e recursos que não são sempre éticos. Esta ética da responsabilidade não converte princípios ou ideais em práticas do cotidiano, como faz a outra, nem aplica normas ou crenças sobre virtudes filosóficas, religiosas, ou máximas aplicando-as nos termos da ética dos negócios. Os valores do mundo econômico só podem ser compreendidos como instrumentais e de acordo com as práticas empresariais em jogo.
De forma geral, a ética dos negócios responde de forma instrumental às necessidades empresariais, valendo o esforço de conciliar conflitos trabalhistas, relacionamento com clientes, conquistar novos consumidores potenciais que simpatizam com determinada atividade comercial, produzir no imaginário social a ideia de que se preservam os valores morais internamente e externamente, e, sobretudo, a necessidade de se alcançar os objetivos intentados pela empresa pela tomada “racional” de decisões que exigem grande poder de deliberação em função da análise das circunstâncias e de suas complexidades.
Limito-me a Srour (2000, p. 63) para tentar resumir que, devido às fortes necessidades de tomadas de decisões por administradores de negócios no mundo competitivo em que nos encontramos, é interessante analisar o porquê se toma partido de uma ética em detrimento de outra doutrina, pois “(...) ao adotar-se a ética da responsabilidade, realizam-se análises de risco, mapeiam-se as circunstâncias, sopesam-se as forças em jogo, perseguem-se objetivos e medem-se as consequências das decisões que serão tomadas”. O pensador alemão Max Weber captou essencialmente a disputa dessas éticas e sua importância para o mundo moderno em que o Estado e as instituições do capitalismo recente exigem esforços que vão tomando conta e absorvendo o mundo da vida, pela administração racionalizada e racionalizadora do homem e de suas tomadas de decisões por valores mais instrumentais.
A lógica dessas éticas, particularmente a da “responsabilidade”, é própria do capitalismo atual em suas fases de complexidades, como diz Weber (in SROUR, 2000, p.50):

(...) toda atividade orientada pela ética pode subordinar-se a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas. Ela pode orientar-se pela ética da responsabilidade (verantwortungethisch) ou pela ética da convicção (gesinnsungethisch). Isso não quer dizer que a ética da convicção seja idêntica à ausência de responsabilidade e a ética da responsabilidade à ausência de convicção. Não se trata evidentemente disso. Todavia, há uma oposição abissal entre a atitude de quem age segundo as máximas da ética da convicção — em linguagem religiosa, diremos: ‘O cristão faz seu dever, e no que diz respeito ao resultado da ação remete-se a Deus’ — e a atitude de quem age segundo a ética da responsabilidade que diz: ‘Devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos’.

Ainda segundo Max Weber, a tomada de decisões no mundo racionalmente administrado da sociedade industrial como a nossa, se projeta como potencialmente importante uma vez que a modernidade incorporada por meio das relações sociais em todos os âmbitos da vida exige que as ações estejam muito mais voltadas para a assunção das finalidades a alcançar e das consequências das ações a tomar, do que conduzir à crença em virtudes morais fundadas em doutrinas que preservam o homem dos efeitos instrumentais das relações do capitalismo moderno. Weber deixa bem claro o sentido de uma ética da convicção para nossa atualidade, ao qual, de modo geral, não se ajusta bem às necessidades dos empreendedores empresariais, pois preferem deixar aos professores, filósofos, sociólogos e pensadores, o ônus de ter que pensar as virtudes morais, uma vez que não são eles que terão que arcar com o ônus de uma decisão ou de um empreendimento fracassado.
Como diz Weber (in SROUR, 2000, p. 65):

O partidário da ética da convicção não se sentirá “responsável” senão pela necessidade de velar sobre a chama da pura doutrina a fim de que ela não se extinga; velar, por exemplo, sobre a chama que anima o protesto contra a injustiça social. Seus atos só podem e devem ter um valor exemplar, mas que, considerados do ponto de vista do objetivo eventual, são totalmente irracionais, só podem ter um único fim: reanimar perpetuamente a chama de sua convicção.
Por outro lado, quando o administrador deixa de tomar as medidas que podem ser consideradas socialmente mais benéficas, ou seja, que buscariam conciliar os interesses e as finalidades da empresa com os da sociedade, equilibrando conflitos, sua escolha pode surtir efeitos paradoxais na tomada de decisões: ou o bem comum, ou terá que suportar o peso de decisões que ocasionam efeitos maléficos, como o daquelas atividades industriais que passam por cima de todo protocolo convencionado das leis ambientais, violentando a ecologia em nome do lucro, e então poderão arcar com o malogro e a inépcia de suas ações.

Como escreve Renato Janine Ribeiro em seu artigo intitulado “O governo e a ética da responsabilidade” (FOLHA DE SÃO PAULO, 13/12/98):

Aos olhos de muitos, a ética da responsabilidade aparece como uma indecência, o que ela não é, e não como é: uma ética menos ciosa de princípios, mas que nem por isso leve de portar, porque é implacável com quem não consegue gerar os efeitos prometidos.
(...) a responsabilidade impõe a obrigação do sucesso. Não há perdão para o fracasso. (...) um político tem de estar preparado para a derrota e para o vazio que a ética da responsabilidade produz à sua volta.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações empresarias se solidificam no sentido de propagar uma ética no mundo dos negócios, sintonizadas com as mudanças ocorridas de acordo com as exigências da competição no capitalismo atual, que embala a discussão pela assunção de novos padrões comportamentais para as empresas e seus administradores. Não se pode descartar que os desvios de condutas que levam a tomadas de posições que não se adéquam à ética convencionada estão de acordo com aquelas análises sociológicas que apontam as divergências de valores e a cultivação de padrões de condutas morais dentro das corporações, ou seja: se o capitalismo globalizado estende exigências de relações cada vez mais impessoais nas empresas, e ao mesmo tempo encontra relações de corporativismo, voltadas para interesses meramente econômicos, relações paternalistas, relações de condutas pessoais se preponderando sobre interesses maiores, então se colocam como o outro lado do desafio ético para as instituições e para o inconstante anseio de se implantar a ética nos negócios.
No entanto, essa postura de uma ética voltada para os negócios, visando dar subsídios aos administradores para a solução e o equilíbrio das necessidades da empresa e da sociedade, não estão desvinculadas de mudanças e exigências ocorridas nas três últimas décadas do século XX, pois estão contextualizadas com transformações exigidas pelas agências de controles sociais, pelas sanções públicas, pelas penalidades por danos sociais e morais, e pelo risco de ocorrerem falências, levando as empresas a adotarem os pressupostos das “éticas dos negócios” como meio de se preservarem da imagem de “irresponsáveis” sociais, ou de insensíveis aos códigos morais da sociedade e, sobretudo, dos riscos de não assumirem essa postura pela ética empresarial “responsável”.



REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril, 1975. (Coleção Os Pensadores).
MOREIRA, Joaquim Manhães. A Ética empresarial no Brasil. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
NASH, Laura L. Ética nas empresas: boas intenções à parte. São Paulo: Makron Books, 1993.
RIBEIRO, Renato Janine. O Governo e a ética da responsabilidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 dez. 1998.
SÁNCHES, Vásquez Adolfo. Ética. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
SINGER, Peter. Ética prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. Rio de Janeiro: Campus, 2000.



ARTIGO 05

ÉTICA E EDUCAÇÃO
A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CONTEXTO DE CRISE DA RAZÃO[6]

RENATO JOSÉ OLIVEIRA

Introdução

A poucos anos do fim da década, vivemos uma era de perplexidades e incertezas, antessala do novo milênio que se anuncia, repleto de desafios para os educadores.

Afinal, que papel cumpre a educação em um mundo simultaneamente atravessado pelo desenvolvimento técnico avassalador e pelo crescimento vertiginoso da fome e da miséria?
Que significa educar em um tempo em que a violência (política, étnica, religiosa, esportiva) atinge escala planetária, tornando tênues as fronteiras entre civilização e barbárie?

Nesse contexto, múltiplas ações pedagógicas, muitas delas visceralmente antagônicas, se dão simultaneamente no dia-a-dia. No círculo familiar, nas salas de aula, nas ruas, nos morros, nas seitas religiosas, nas gangues de jovens, nas torcidas organizadas, enfim, nos mais diversos espaços sociais, diferentes valores morais, éticos e políticos constroem diferentes concepções de mundo e de homem.
Essas diferenciações — saudáveis em toda sociedade que se pretende democrática e pluralista —, quando cozidas em um caldo de desigualdades sociais gritantes, degeneram em obsessões e fanatismos diversos, os quais querem afirmar suas verdades a partir da coação e do exercício da violência, pondo sob-risco constante os mais elementares direitos da cidadania.
Ser cidadão é poder apropriar-se dos bens socialmente produzidos, é atualizar

“todas as possibilidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado”.  (Coutinho, 1994, p. 2)

Tal possibilidade de apropriação deixa de existir se no seio da sociedade se instala a competição exacerbada, expressa pelo que aqui no Brasil se conhece por “lei de Gérson”: querer levar vantagem em tudo.
O que sustenta essa “lei” é, sem dúvida, uma razão de natureza pragmática, a qual se ergue sobre os escombros da chamada razão universal. Esta certamente teve no passado seus dias de glória, mas, segundo afirma Baudrillard (1995), em um mundo onde o que importa é o que aparece, não há mais a possibilidade de fazer a crítica racional dos valores artísticos, morais ou políticos, já que o sistema tem a inesgotável capacidade de absorver qualquer crítica, convertendo-a em instrumento de reafirmação de si mesmo. Na visão baudrillardiana, vivemos um tempo em que o aparente deixa de ser aparente, pois tudo é na verdade superfície e imagem, o que permite proclamar o fim da história.
Vendo o momento atual não como terminalidade, mas enquanto transição marcada pelo fim da centralidade da razão, que não mais desempenha o papel de guia seguro para as ações humanas, Maffesoli (1995) destaca o fenômeno do tribalismo.
Por não acreditarem mais nos grandes valores morais e espirituais pregados pelas religiões nem nos ideais democráticos perseguidos pela ação política coletiva, as pessoas se fecham em grupos ou seitas, os quais são capazes tanto de construir algum tipo de ação solidária como toda a sorte de fanatismos.
Embora Maffesoli aposte no ajustamento dos diversos grupos ou seitas, em um processo de “cinestesia social”, a crescente tendência à conversão do existir humano em instrumento exclusivo de realização de fins particulares, de interesses concernentes a esta ou aquela tribo, é sem dúvida preocupante.
A discussão aqui projetada pretende, então, suscitar questões capazes de contribuir para a reflexão do educador dentro e fora da sala de aula, visto que as questões éticas atravessam nos mais diferentes níveis, o cotidiano das relações humanas.

ÉTICA: DO ESQUECIMENTO À NOTORIEDADE

Alain Badiou (1995) assinala que certos termos eruditos, à semelhança de uma solteirona esquecida que repentinamente se torna a grande atração de um salão de festas, têm às vezes o privilégio de ocupar os espaços da mídia e da publicidade. Tal fenômeno se aplicaria, por exemplo, à ética.
A despeito da referência pouco lisonjeira às solteiras de mais idade, a questão levantada pelo autor merece ser apreciada. Antes, porém, cabe perguntar:

O que significa ser ético ou agir eticamente? No que a ética difere da moral, se é que cabe a distinção?

Lalande (1993, p. 348) destaca que

 “historicamente a palavra ética foi aplicada à moral sob todas as suas formas, quer como ciência, quer como arte de dirigir a conduta”.

 No seu entender, cabe então definir ética enquanto ciência cujo objeto são os juízos de apreciação sobre os atos humanos, encarados como bons ou maus. Como frequentemente o juízo comum mistura as questões éticas com as morais, o autor sublinha a importância de separar as duas instâncias. Moral seria o conjunto das prescrições admitidas em uma época e em uma sociedade determinadas, o esforço para que possa haver conformação a tais prescrições, a exortação e a segui-las. Já a ética, agraciada com o galardão da episteme, posto que seja situada como ciência, deve possuir caráter mais genérico.
A maior generalidade da ética é sustentada por Kant (Vancourt, 1987), que situa como morais os eventos que dizem respeito à conduta subjetiva e como éticos aqueles associados à moralidade incorporada nas práticas e instituições de determinada comunidade, fornecendo critérios consensuais para que qualquer pessoa faça distinção entre bem e mal, entre justo e injusto, entre certo e errado. Para Kant, aliás, uma norma moral pode ser generalizada e atingir a condição de norma ética, desde que seja aplicável a todos os seres dotados de razão.
Esta, tomada enquanto princípio fundante das normas éticas estabelece que agir eticamente significa orientar-se segundo máximas capazes de estabelecer as formas corretas de conduta. Tais máximas são, na visão kantiana, normas estabelecidas pela faculdade do discernimento, que, tendo em vista o universal, institui regras para as situações particulares. Assim, um juízo ético pode ser qualificado de concreto quando engloba tanto a máxima universal, ou seja, o princípio genérico que norteia a ação, quanto à regra particular, aplicável a cada situação específica do viver humano. Já Maffesoli (1994) considera a moral instância universal e universalizável. A Revolução Francesa teria sido um exemplo típico de movimento que Maffesoli faz aí uma analogia com o ajuste natural das diferentes funções do organismo humano, processo que os médicos chamam de cinestesia.
Renato José de Oliveira difundiu uma certa moral, a burguesa, para todos. A ética, por sua vez, estaria referida aos costumes particulares, sendo tributária de grupos. Para Maffesoli a Máfia seria um bom exemplo de grupo cujo comportamento é condenado pela moral vigente na sociedade, mas que possui uma ética própria, seguida por seus integrantes. Ainda segundo esse autor, a entrada na pós-modernidade anuncia a saturação do que se poderia chamar de moral universal, a qual se faz acompanhar pelos particularismos éticos característicos das tribos.
Ética e moral podem ser, portanto, tomadas enquanto instâncias intercambiáveis. Considerando as raízes etimológicas dos dois termos, verifica-se que o vocábulo grego ethos e o latino mos possuem significados correspondentes, referidos à conduta e aos costumes humanos. Para os fins da discussão aqui proposta, interessa trabalhar nos marcos do arcabouço conceptual kantiano, construído com base no que se convencionou chamar de razão universal.
Enquanto instâncias generalizáveis, as normas éticas supõem, conforme foi dito, a clara distinção entre os conceitos de bem e mal. Badiou (1995) relativiza esses conceitos:
Acaso a imagem do bem feita por um homem branco, ocidental, cristão é a mesma feita por um muçulmano xiita?
Ou em termos mais genéricos: as ideias de bem e mal são suficientemente óbvias para se imporem por sobre as diferenças culturais?
            Do ponto de vista da antropologia contemporânea, o campo axiológico se acha fragmentado, revelando uma pluralidade infinita de sistemas normativos excludentes, cada qual possuindo sua validade específica, conforme o contexto cultural em que é formulado. Nenhum deles é, portanto, melhor que o outro, pois as culturas são incomensuráveis entre si.
No cerne desse debate, como ficaria, então, o problema do retorno ao ético enquanto modismo patrocinado pela mídia?
Tratar-se-ia da revalorização da ética kantiana ou de pôr em evidência uma ética assentada sobre outros princípios?
Sonia Marrach (1993) aprecia com destaque essa questão. Considerando que a mídia exerce poder sobre as massas, pois é capaz de produzir fascínio, a autora faz uma análise do caso Collor, salientando que os meios de comunicação teriam atuado no sentido de produzir um simulacro de realidade para crucificar o pecador (Collor) e perdoar o pecado, isto é, o projeto neoliberal em vias de implantação no Brasil. Ao saírem às ruas para pedir o impeachment, as massas teriam agido mais em função de um espetáculo teatral (pintar a cara, vestir-se de preto etc.) do que em defesa dos ideais éticos e de cidadania. As relações entre massa e mídia haveriam, então, fundado uma nova ética, corriqueira, descartável, prática, assentada no princípio da emoção.
Se for essa a tônica do agir ético da atualidade, não é a Kant que se retorna, mas ao ceticismo de Hume, para quem não há possibilidade de legitimar racionalmente os juízos éticos, isto é, conferir-lhes o caráter de verdade. Se há regras a seguir, estas não derivam da razão, mas dos sentimentos, sendo a utilidade o critério norteador de qualquer julgamento ético. Tal como não pode garantir no dia de amanhã o nascer do Sol, crença que nos é garantida pelo hábito ou costume de observar cotidianamente o mesmo fenômeno, a razão é incapaz de formular juízos éticos por ser “lenta em suas operações” e estar “extremamente exposta ao erro e ao equívoco” (Hume, 1939, p. 97-98).
Nessa perspectiva, é possível dizer que o retorno ao ético é mais um fenômeno produzido no nível do discurso institucional (governos, meios de comunicação, entidades civis, ONGs etc.) do que no nível dos interesses humanos, os quais estariam marcados, neste final de século, pelo recrudescimento dos egoísmos, pela precariedade das políticas de emancipação e pela multiplicação das violências (Badiou, 1995).
A partir das considerações de Marrach e de Badiou, cabe levantar, entretanto, uma questão:
 Mesmo sendo modismo a ética deve, como todo produto posto à venda, visar a compradores. Como algo só é comprável se existe alguém potencialmente disposto a comprá-lo, que disposições seriam essas?
      Em outras palavras, a quais anseios concretos das massas o retorno ao ético estaria respondendo?
Na medida em que a escalada mundial da violência atenta contra aquilo que todo indivíduo tem como fundamental, ou seja, o direito à própria vida, a preservação desta se coloca como condição-limite. A partir daí é forçoso reconhecer a necessidade de demarcar fronteiras entre um “bem” e um “mal”, de sorte que a relativização extremada desses referenciais não pode ser admitida por conduzir a um vale-tudo cuja consequência é nada mais nada menos que a destruição da espécie humana.
Portanto, se o retorno ao ético possui o caráter de modismo, ele não se resume apenas a isso, já que estão em jogo aspirações maiores que o simples mercado de imagens sustentado na teatralização do agir cotidiano.
Contudo, em que fórum pode se dar a demarcação das fronteiras referidas supra? Que dimensão do humano pode traçá-las? A razão universal? A emoção?
Essas questões permitem constatar que o problema ético não pode ser suficientemente discutido se for posto ao largo do que hoje se chama de crise da razão.

CRISE DA RAZÃO OU DE UM MODELO DE RAZÃO?

Quando se fala em razão tem-se a ideia de que esta se constitui em algo único, universal, capaz de conservar-se incólume através dos tempos históricos.
Bem mereceria, nesse caso, ser chamada A Razão e respeitada como possuidora de estatuto divino. Contra ela Nietzsche (1993) dirigiu sua crítica, identificando-a com a dimensão apolínea do existir, caracterizada pela busca da beleza, da clareza, da retidão e da justiça. Para esse filósofo, enquanto divindade ética, Apolo exige dos homens o senso da medida e o autoconhecimento, condicionando o belo a esses dois princípios.
Todavia, a existência humana possui outra dimensão, a dionisíaca, ligada ao êxtase, à busca do prazer, às potências da paixão. Em dado momento, as duas dimensões opostas achavam-se harmonizadas, momento este representado, segundo Nietzsche, pelo teatro trágico de Ésquilo (525-456 a.C.) e de Sófocles (496-405 a.C.). Em Sófocles, por exemplo, a saga edipiana permite vislumbrar a comunhão entre o apolíneo e o dionisíaco:

 Édipo tem a sabedoria e com ela decifra o enigma que lhe propõe a esfinge; contudo, é justamente o saber que o condena ao erro e à miserabilidade expressos pelo ato de matar o pai e desposar a própria mãe. Só que o erro moral é inseparável do êxtase, constituindo-se o prazer e a dor em sentimentos que se harmonizam no curso da existência humana: “tudo que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado. Isso é o teu mundo! Isso se chama um mundo!” (Nietzsche, 1993, p. 69).

A harmonia teria terminado quando Eurípedes introduziu na tragédia o prólogo, recurso explicativo cujo objetivo era racionalizar o drama. A partir daí, Nietzsche vê a derrocada do dionisíaco e o consequente triunfo do apolíneo, porém não é Apolo quem fala pela boca de Eurípedes e sim um intérprete: Sócrates.
Avesso a tudo quanto se ligasse ao irracional, Sócrates teria dirigido seu olhar retificador contra as ilusões que mascaram a realidade, impedindo a verdadeira compreensão das coisas. A pretensão socrática era corrigir o mundo pela razão, desiludir o homem, ensiná-lo a se colocar no caminho da verdade. Por trás do “sei que nada sei” haveria, no entender de Nietzsche, um projeto nada modesto: fazer da razão, alçada ao patamar da universalidade, o grande guia da conduta humana.
O primado da razão teria então gerado a infelicidade, já que implica em renunciar ao aqui e agora, ao momentâneo, ao transitório, ao precário, aos desejos em função de um ascetismo intelectual fundado na busca da verdade. Como consequência da cisão entre pensamento e vida surge “esse homem abstrato, guiado sem mitos, a educação abstrata, os costumes abstratos, o direito abstrato, o Estado abstrato” (Nietzsche, 1993, p. 135).
Essa crítica peca, entretanto, justamente por considerar que uma mesma e única razão se impõe no mundo ocidental, subjugando o homem há vários séculos. Entretanto, como salienta Pessanha (1989), as racionalidades grega e moderna diferem substancialmente. A razão grega não tinha os mesmos fundamentos da razão moderna, construída sobre o pensamento científico dos séculos XVI e XVII, mas erguia-se, outrossim, sobre a palavra, sobre o argumento, o qual deveria convencer, persuadir.
O homem grego era eminentemente político, isto é, respirava a atmosfera da polis, caracterizada, sobretudo no período clássico (séculos V e IV a.C.), pelos laços de philia (amizade) entre os cidadãos. A despeito da posição social ocupada, um cidadão via o outro como semelhante (hómoioi), sujeito de direitos e deveres. É certo que a condição cidadã variava bastante de cidade para cidade, havendo, como sublinha Aristóteles (1991), profundas diferenças entre habitante e cidadão propriamente dito. Segundo o estagirita, o habitante não fazia senão participar de um modo imperfeito da vida da polis, seja por estar na condição de escravo, por ser estrangeiro ou por não possuir, como no caso do artesão, tempo livre suficiente para cultivar os ideais de civismo necessários à participação no governo. Os cidadãos, ao contrário, não se dedicando às atividades servis, podiam participar das reuniões públicas (ekklesias) que deliberavam sobre as questões de Estado.
Embora restritiva do ponto de vista humano, já que a condição cidadã não era desfrutada pela maioria da população das cidades, a sociedade grega não via o ético e o político enquanto esferas separadas. Para deliberar sobre a justeza dessa ou daquela questão, era preciso pôr em confronto as diferentes opiniões, sendo as controvérsias, além de inevitáveis, sadias para o exercício da cidadania. A razão que sustentava as deliberações possuía, portanto, natureza argumentativa, não cabendo dela exigir, conforme assinala Aristóteles (1992), a precisão de uma demonstração matemática. Em consequência, o discurso de um orador era construído sobre as ambiguidades da situação analisada, não sobre as verdades intrínsecas das premissas que fundamentam os raciocínios científicos. Ele visava um auditório que iria escolher, após um período de reflexão, entre alternativas possíveis, como por exemplo, condenar ou absolver Sócrates do crime de corromper espiritualmente a juventude.
Para Chaim Perelman (1988, p. 21), a razão argumentativa, apoiada sobre as bases da retórica clássica, declina a partir do século XVI com o advento do pensamento burguês,

“que generalizou o papel da evidência, quer se tratasse da evidência pessoal do protestantismo, da evidência racional do cartesianismo ou da evidência sensível do empirismo”.

A razão moderna, tendo como um de seus pilares o cartesianismo, busca fundamentos nas evidências matemáticas. Afinal, para Descartes, Deus, o grande geômetra, criara o universo tendo por ferramenta básica a clareza dos números e das relações geométricas, não a ambiguidade das palavras. O método cartesiano exorta o homem a evitar o erro, o qual pode ter origem na prevenção e na precipitação a que está sujeito nosso juízo. Tais atitudes, certamente danosas ao espírito, ligam-se ao que é incorporado a partir dos costumes, os quais tendem a produzir falsos julgamentos:

Desse modo [...] passei a não crer com demasiada firmeza em nada do que fora inculcado por influência da exemplificação e do costume. E assim me libertei, pouco a pouco, de inúmeros erros que podem obscurecer nossa lucidez natural e tornar-nos menos capazes de entender a razão (Descartes, 1989, p. 57).

Mas a razão moderna possui também outro pilar na ciência experimental, que tem por objetivo dominar a natureza, colocando-a a serviço do homem. O empirismo baconiano condena, então, a investigação filosófica por considerá-la construída sobre alicerces frágeis, ou seja, por basear-se mais na especulação que na coleta de dados em quantidade e qualidade desejáveis para formular os raciocínios. A correta investigação é, para Bacon, a de cunho experimental, que deve ser judiciosamente dirigida, sob pena de se ver reduzida a um mero tatear em meio à escuridão:

Mas a verdadeira ordem da experiência [...] começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida — nunca vaga e errática —, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos experimentos (Bacon, 1973, p. 56).

Os tempos modernos vão se caracterizar, então, pela confiança quase cega no progresso da ciência, vista não só como instrumento de dominação da natureza, mas também como redentora da humanidade. Para os iluministas, somente uma razão alicerçada sobre as sólidas bases do conhecimento científico poderia arrancar o homem das trevas da superstição e da ignorância, em última análise responsáveis pela penúria e pelos flagelos sofridos por boa parte do gênero humano.
Como as leis do mundo físico se achassem bem estabelecidas, permitindo o controle e previsão dos fenômenos naturais, o pensamento científico do século XIX busca agora estabelecer as leis do desenvolvimento biológico e histórico-social. Surgem, pois, a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies, a qual abala significativamente as teses criacionistas sustentadas pela religião, e o positivismo comtiano, crítico contundente da metafísica. Se a natureza possui uma ordem intrínseca que lhe confere funcionamento harmônico, para Comte a sociedade lhe segue o exemplo. Quando o homem abandonar as elucubrações estéreis, substituindo-as por formas positivas de pensar, compatíveis com sua inteligência, haverá de encontrar essa harmonia.
Embora contrários à visão de que a sociedade se constitua em todo harmônico, os pensadores socialistas não se opõem à ideia de progresso. Marx dirá, aliás, que este é movido pelos conflitos, pela necessidade de superação do velho por um novo que nasce das contradições geradas no interior do próprio velho. Mesmo sem se arriscar a ditar “receitas para os caldeirões do futuro”, Marx entendia que a superação do capitalismo não era tão somente uma questão de desejo, mas conseqüência de uma lei do desenvolvimento histórico cientificamente determinada.
Feito esse breve panorama do processo de construção das bases científicas da razão moderna, é possível compreender então por que a razão argumentativa, centrada no domínio da opinião, do provável, do plausível e não no campo das certezas definitivas (Pessanha, 1989), foi sendo progressivamente desqualificada. Embora esse declínio não tenha implicado desaparecimento, representa, no curso da modernidade, um evidente desprestígio da argumentação enquanto instância capaz de intervir na busca de soluções para os mais diferentes problemas humanos.
Reivindicando o estatuto de universalidade, a razão moderna se declara, portanto, como a única legítima, quando na verdade constitui apenas um tipo de razão. Em conseqüência, com a crise dos ideais da modernidade, a razão moderna permite que sejam generalizadas contra outras formas de racionalidade as críticas dirigidas contra si. O questionamento empreendido por Nietzsche é então retomado por autores pós-modernos, como por exemplo, Maffesoli.
A abordagem maffesoliana da realidade humano-social nega que exista uma verdade ou um “em si” por trás das ações humanas. O mundo é tão somente espetáculo no qual o que acontece — justiça e injustiça, liberdade e opressão etc. — encontra sua justificativa no próprio palco das ações humanas e não em qualquer sistema normativo que, apontando para um dever-ser, procure explicar desvios constatados.


Para Comte (1978), o termo positivo possui várias acepções. Opõe-se ao quimérico (representado pelas elocubrações teológicas e metafísicas), à indecisão (caracterizada pelas dúvidas e pelos debates que não encontram soluções para as questões que se propõem a discutir), à ociosidade (vista como expressão de uma curiosidade estéril, que nada traz de proveitoso para o desenvolvimento do indivíduo e da espécie) e à negatividade (ligada ao conhecimento desordenado que nada constrói).

Segundo Konder (1992, p. 45), Marx acrescentou esse comentário ao posfácio da segunda edição do primeiro volume de O capital, polemizando contra os discípulos de Comte.

Conforme dito anteriormente, o esgotamento dos ideais democráticos e da crença na emancipação coletiva seriam, no entender de Maffesoli (1995), sintomas característicos do colapso do projeto da modernidade. A luta pela liberdade e pela transformação social é substituída pela busca de “liberdades intersticiais” que se colocam como as conquistas possíveis no espaço social de atuação das múltiplas tribos.


Nessa perspectiva, os valores éticos se relativizam e o político se configura enquanto espaço de representação teatral onde não há credulidade ou logro, apenas personagens cujos papéis não constituem simulacros, mas o próprio viver:

É difícil opor um país real a um país político, não existem enganadores e enganados, mas uma atitude global que faz com que a lucidez não impeça o investimento, ou mais exatamente uma situação que faz com que a paixão tenha uma grande importância no funcionamento da razão, perturbando-lhe os efeitos (Maffesoli, 1986, p. 110-111).

Ao afirmar que a imagística popular fala da precariedade, da finitude, do caráter efêmero da realidade com muito mais pertinência que a razão, Maffesoli atesta a falência do projeto filosófico da modernidade, decretando o triunfo da aparência sobre a essência, do êxtase em relação à sobriedade, do dionisíaco sobre o apolíneo. Os esquemas macroestruturais concebidos pela razão moderna com o intuito de analisar o tecido social, como o positivismo e o materialismo histórico, não podem dar conta de um mundo caótico no qual os mais exóticos arranjos humanos se fazem e desfazem sem obedecer a princípios previamente estabelecidos:

As partículas elementares constitutivas da matéria social, se nos permitem esta metáfora, formam configurações particulares que podem ser harmoniosas ou absolutamente aberrantes, mas elas não obedecem a nenhuma outra lei, salvo aquela da sua dinâmica própria, é essa dança nietzscheana que proporciona o mais belo e o pior, é essa dança que proíbe a explicação causal e impede a imposição planificadora do controle social, da mesma maneira que proíbe o julgamento moral num ou noutro sentido (Maffesoli, 1986, p. 117).

Habermas (1990) assinala que, para ser total, a crítica da razão feita por Nietzsche deve se colocar fora dos horizontes desta última, projetando-se a partir da dimensão dionisíaca do existir. Em conseqüência, não há outro caminho senão hipostasiar o não racional e o estético enquanto o outro da razão. Trata-se, assim, não do resgate da harmonia entre os contrários existentes no espírito trágico esquiliano (ou sofocliano), mas do afã de que Dioniso, qual Messias, venha redimir a humanidade sufocada por séculos de racionalidade. A mesma matriz de pensamento serve também de apoio ao pós-modernismo de Maffesoli.
Tendo claro que a crise da razão moderna não representa a crise de toda a racionalidade, Habermas busca retomar o projeto da modernidade, vendo como alternativa a chamada razão comunicativa. Os pontos de contato e as diferenças em relação à razão argumentativa serão apreciadas no próximo tópico, em que se buscará situar a educação em relação à problemática até aqui discutida.


NO CONTEXTO DE CRISE, QUAL O PAPEL DA EDUCAÇÃO?

De acordo com Kramer (1993), a educação pode ser tomada enquanto prática social à qual se vincula determinada visão de mundo, transformadora da realidade ou não. Considerando a dimensão transformadora, a educação persegue, entre outros fins, promover o autoconhecimento do educando enquanto ser pensante e construtor de sua existência subjetiva e histórico-social. Trata-se, então, de levar quem se educa a se posicionar criticamente em relação à natureza, à sociedade, ao mundo e ao tempo em que vive.
Nos marcos de uma visão confirmadora do existente, os processos educativos desenvolvidos na família e nos primeiros níveis escolares levam primeiro a criança a conhecer o que ela não deve fazer. Segue valendo, como princípio geral, a norma ética do senso comum: seu direito termina quando começa o do outro.

Caminhando um pouco pelas sendas abertas por Badiou (1995), que não ditos podem emergir desse dito popular?

O outro, esse desconhecido anônimo, é alguém que potencialmente me ameaça. Respeito-o, porque não quero ser desrespeitado, não invado seu espaço porque não quero ter meu espaço invadido, enfim, o que norteia minhas ações é uma série de nãos. A partir daí, o outro será tão mais reconhecido, quanto mais se aproximar de minha imagem refletida no espelho. É a mim mesmo que desejo respeitar, não a um outro diferente de mim (Badiou, 1995, p. 36).

Nesse ponto, um desafio se coloca para a educação: há como superar essa ética do não mal, construindo as bases de uma nova ética?

Na medida em que o “bem” não é, como foi dito, um universal abstrato nem tampouco pode ser relativizado a extremos que atentem contra a própria existência humana, a questão central colocada para a nova ética é como validar ou não um dado conjunto de ações humanas. A razão comunicativa defendida por Habermas pretende atacar esse problema, vislumbrando o consenso entre indivíduos, construído em um contexto de diálogo, enquanto alternativa viável. Segundo Rouanet (1992), a interlocução se dá visando estabelecer critérios de validade quanto a três proposições básicas: as referentes ao mundo dos objetos (proposições objetivas), as referentes ao mundo social das normas (proposições normativas) e as referentes ao mundo das vivências e emoções (proposições subjetivas). A diferença básica com relação à razão moderna é que, no agir comunicativo, não existe validação a priori do que quer que seja: as verdades são construídas pela interação mútua dos indivíduos, cujo debate desembocará em soluções consensuais para as diferentes questões em jogo.
Endossando a proposta habermasiana — que no seu entender tem o mérito incontestável de oferecer uma saída para a crise da razão moderna sem descambar para o irracionalismo —, Rouanet (1992, p. 347) resume bem seu espírito quando afirma:

Mas, na dúvida, é preferível apostar em Habermas no sentido de Pascal: se ganharmos, ganharemos tudo; se perdermos, não perderemos nada, porque não podemos ficar mais pobres do que já estamos.

Tendo em vista a complexidade das relações humanas, é possível apostar no consenso como a via que resolve todos os problemas?
Ou há domínios, como a política, impensáveis sem o dissenso (Rancière, 1995)?
Na medida em que as ações políticas se desenvolvem na disputa pela vitória deste ou daquele projeto ancorado em determinados sistemas de valores, há, sem dúvida, um auditório que deve ser convencido, persuadido da justeza desse ou daquele argumento. Conforme frisa Perelman:

Toda argumentação, qualquer que seja, propõe-se influenciar um auditório — no sentido amplo dessa palavra, que engloba não apenas auditores, mas também leitores — e esse auditório não é uma tábua rasa, antes já admite certos fatos, certas pressuposições, certos valores e certas técnicas argumentativas (apud Pessanha, 1989, p. 235).

Para a razão argumentativa, o importante é obter o aval do auditório e não alcançar o consenso, o qual se configura em elemento circunstancial, transitório, precário, efêmero. Os fóruns de decisão que, entre outras questões, devem resolver o problema da demarcação de fronteiras entre um “bem” e um “mal”, não são, portanto, outros senão os diversos auditórios cuja persuasão é necessária.
É cabível objetar que, ante as desigualdades sociais existentes no mundo de hoje, os diferentes sujeitos do diálogo não disputam os auditórios em pé de igualdade, impondo por outros mecanismos seus pontos de vista. Isso mostra, porém, que não só a argumentação, mas o próprio solo argumentativo precisa ser construído. Se um dos interlocutores possui meios para publicizar seu discurso e o outro, não, já não há mais disputa: tudo passa a ser simulacro, aparência, ilusão.
Educar para uma nova ética significa, pois, ter consciência dessas limitações, não perdendo de vista o fato de que o discurso ético, tal como ocorre com o discurso filosófico, é construído em estado de permanente tensão entre a contingência histórica e o desejo de universalidade (Pessanha, 1989), tensão esta que caracteriza o próprio existir do homem.


 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VANCOURT, Raymond, (1987). Kant. Lisboa: Edições 70.




[1] Fragmentos do texto do Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra [UFSC/CNPq] (com grifos)

[2] Fábio Henrique Cardoso Leite, Professor de Filosofia do Direito da UNIGRAN, Mestrando em História/UFM. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. (com grifos)
[3] O poema de Parmênides é exatamente assim, um mito, uma lenda de ascensão celeste, e nessa ascensão é que lhe é revelado que “ o ser é” e “o não-ser não é”.Alguns autores indicam, como contraposta à via do ser, caracterizada pela discriminação do ser e do não ser pela verdade, a via da aparência, caracterizada pela opinião, nas quais não há uma confiança desvelante. Contrapondo-se à discriminação da verdade, a opinião constitui o caminho de quem não distingue ser de não ser. http://www.enciclopedia.com.br/med2000/pedia98a/filo7fvl.htm. acesso: 20de maio de 2004.

[4] WALTER OMAR KOHAN, Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 82, p. 221-228, abril 2003 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br (com grifos)

[5]Amadeu de Farias Cavalcante Júnior, Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, com Especialização em Educação pelo Centro de Educação na UFPa e Mestre em Sociologia pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPa. Atualmente é docente da Disciplina Ética Profissional para o Curso de Administração/ESMAC. - Adcontar, Belém, v. 5, n.1. p. 15-34, junho, 2004. (com grifos)
[6] RENATO JOSÉ OLIVEIRA é professor-assistente do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutorando em Educação da PUC/RJ. Seus trabalhos mais recentes são: As revistas de divulgação científica e a transmissão do conhecimento: uma abordagem sobre o ensino informal de ciências (Contexto & Educação, v. 8, nº 32); Ciência e divulgação: metas e mitos (Cadernos de Pesquisa, nº 83) e Análise epistemológica da visão da ciência dos professores de química e física do município do Rio (Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 72, nº 172). (com grifos)



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