Escola de Atenas - Séc. XVI
representa a Grécia Antiga, por meio de seus filosófos, como Plantão e
Aristóteles.
Obs.: Artigos de diversos autores abordando as questões acima!!!
Boa Leitura.
ARTIGO 01
1. Da
definição de Filosofia
A
Filosofia é um ramo do conhecimento que
pode ser caracterizado de três modos: seja pelos conteúdos ou temas tratados,
seja pela função que exerce na
cultura, seja pela forma como trata
tais temas. Com relação aos conteúdos,
contemporaneamente, a Filosofia trata de conceitos tais como bem, beleza,
justiça, verdade. Mas, nem sempre a Filosofia tratou de temas selecionados,
como os indicados acima. No começo, na Grécia, a Filosofia tratava de todos os
temas, já que até o séc. XIX não havia uma separação entre ciência e filosofia.
Assim, na Grécia, a Filosofia
incorporava todo o saber. No entanto, a Filosofia inaugurou um modo novo de
tratamento dos temas a que passa a se dedicar, determinando uma mudança na
forma de conhecimento do mundo até então vigente. Isto pode ser verificado a
partir de uma análise da assim considerada primeira proposição filosófica.
Se dermos
crédito a Nietzsche, a primeira
proposição filosófica foi àquela enunciada por Tales, a saber, que a água é o princípio de todas as
coisas [Aristóteles.
Metafísica, I, 3].
Cabe
perguntar o que haveria de filosófico na proposição de Tales. Muitos ensaiaram
uma resposta a esta questão. Hegel, por exemplo, afirma:
"com ela a Filosofia começa,
porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro,
o único que é em si e para si. Começa aqui um distanciar-se daquilo que é a
nossa percepção sensível".
Segundo Hegel, o filosófico aqui é o encontro do universal, a água, ou seja, um único como
verdadeiro.
Nietzsche, por sua vez, afirma:
"a filosofia grega parece
começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matiz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la
a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição
enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem
imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em
estado de crisálida [sic], está contido o pensamento: ‘Tudo é um’. A razão
citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e
supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como
investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o
primeiro filósofo grego".
O
importante é a estrutura racional de tratamento das questões. Nietzsche analisa
esse texto, não sem crítica, e remarca a violência tirânica como essa frase
trata toda a empiria, mostrando que com essa frase se pode aprender como
procedeu toda a filosofia, indo, sempre, para além da experiência.
A
Filosofia representa, nessa perspectiva, a passagem do mito para o logos. No pensamento mítico, a natureza é
possuída por forças anímicas. O homem, para dominar a natureza, apela a
rituais apaziguadores. O homem, portanto, é uma vítima do processo, buscando dominar a natureza por um modo que não
depende dele, já que esta é concebida como portadora de vontade.
Por isso, essa passagem
do mito à razão representa um passo emancipador, na medida em que libera o
homem desse mundo mágico.
"De um sistema de explicações de tipo genético
que faz homens e coisas nascerem biologicamente de deuses e forças divinas,
como ocorre no mito, passa-se a buscar explicações nas próprias coisas, entre
as quais passa a existir um laço de causalidade e constâncias de tipo
geométrico [...] Na visão que os mitos fornecem da realidade [...] fenômenos
naturais, astros, água, sol, terra, etc., são deuses cujos desígnios escapam
aos homens; são, portanto, potências
arbitrárias e até certo ponto inelutáveis".
A ideia
de uma arqué, que tem sentido amplo
em grego, indo desde princípio, origem, até destino, porta uma estrutura de
pensamento que a diferencia do modo de pensar anterior, mítico. Com Nietzsche, pode-se concluir que o
logos da metafísica ocidental visa desde o princípio à dominação do mundo e de
si. Se atentarmos para a estrutura de pensamento presente no nascimento da
Filosofia, podemos dizer que seu logos engendrou muitos anos depois, o conhecimento científico. Assim, a
estrutura presente na ideia de átomo
é mesma que temos, na ciência atual, com ideia de partículas. Ou seja, a
consideração de que há um elemento mínimo na origem de tudo. A tabela
periódica também pode ser considerada uma sofisticação da ideia filosófica da
combinatória dos quatro elementos: ar,
terra, fogo, água, da qual tanto tratou a filosofia eleática.
Portanto,
em seu início, a Filosofia pode ser
considerada como uma espécie de saber geral, omniabrangente. Tal saber,
hoje, haja vista os desenvolvimentos da ciência, é impossível de ser atingido
pelo filósofo.
Temos,
portanto, até aqui:
i] a Filosofia como conhecimento geral;
ii] a Filosofia como conhecimento específico.
2. Do
método da Filosofia
A ciência moderna, caracterizada pelo método experimental, foi tornando-se
independente da Filosofia, dividindo-se em vários ramos de conhecimento, tendo
em comum o método experimental. Esse
fenômeno, típico da modernidade, restringiu os temas tratados pela Filosofia.
Restaram aqueles cujo tratamento não poderia ser dado pela empiria, ao menos
não com a pretensão de esclarecimento que a Filosofia pretenderia.
A
característica destes temas determina um modo adequado de tratá-los, já que
eles não têm uma significação empírica. Em razão disso, o tratamento empírico
de tais questões não atinge o conhecimento próprio da Filosofia, ficando, em
assim procedendo, adstrita ao domínio das ciências.
Ora,
o tratamento dos assuntos filosóficos não se pode dar de maneira empírica,
porque, desta forma, confundir-se-ia com o tratamento científico da questão. Por isso, no dizer de Kant
"o
conhecimento filosófico é o conhecimento racional a partir de conceitos".
Ou seja,
"as definições
filosóficas são unicamente exposições de conceitos dados [...] obtidas
analiticamente através de um trabalho de desmembramento".
Portanto, a Filosofia é um
conhecimento racional mediante conceitos, ela constitui-se num esclarecimento
de conceitos, cuja significação não pode ser ofertada de forma empírica, tais
como o conceito de justiça, beleza, bem, verdade, etc.
Apesar de
não termos uma clara noção destes conceitos, nem mesmo uma significação
unívoca, eles são operantes na nossa linguagem e determinam aspectos
importantes da vida humana, como as leis, os juízos de beleza, etc.
3. Da
função da Filosofia
Em razão
da impossibilidade de abarcar, hodiernamente, todo o âmbito do conhecimento humano, parece mais plausível pensar
numa restrição temática à Filosofia, deixando-a tratar de certos temas, como os
mencionados acima. Nesse sentido, a filosofia teria um âmbito de problemas
específicos sobre os quais trataria.
No entanto, o tratamento desse âmbito específico
continua a manter ao menos uma função geral, a qual pode ser considerada de
forma extremada ou de forma mais modesta. Assim, a lógica, a ética, a teoria do conhecimento, a estética, a
epistemologia são disciplinas filosóficas, tendo uma função geral para o conhecimento em geral, seja para as
ciências, a partir da lógica, teoria do conhecimento, epistemologia, seja para
os sistemas morais, a partir da ética filosófica, seja para as artes, a partir
dos conhecimentos estéticos. Por exemplo, no que concerne à lógica, ao
menos como a concebeu Aristóteles, ela pode apresentar uma refutação do
ceticismo e, portanto, estabelecer a possibilidade da verdade, determinando a
obediência necessária ao princípio de não contradição.
De forma
menos modesta, mas não sem o mesmo efeito, podemos dizer que as outras
disciplinas pretendem o mesmo, determinando, portanto, a possibilidade de
conhecimentos morais, estéticos, etc. No caso da moral, ela pode mostrar que questões controversas podem ser
resolvidas racionalmente, bem como apontar para critérios de resolução racional
de problemas. [...]
Bibliografia
APEL, Karl-Otto. O desafio da crítica total da
razão e o programa de uma teoria filosófica dos tipos de racionalidade. Novos
Estudos CEBRAP. São Paulo: n. 23, mar. 1989. p. 67-84.
CHAUÍ, Marilena et al. Primeira Filosofia: lições
introdutórias. Sugestões para o ensino básico de Filosofia. 5. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1986.
HABERMAS, J. Consciência moral e agir
comunicativo. (Trad. de Guido A. de Almeida: Moralbewusstsein und
kommunikatives Handeln). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico: estudos
filosóficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990.
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa
(I). Madrid, Taurus, 1987.
HEGEL, Georg W. F. Preleções sobre a história da
filosofia. [Trad. E. Stein]. In SOUZA, José Cavalcante de [org.] Os
pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
KANT, I. Crítica da razão pura. (Trad. de
Valério Rohden: Kritik der reinen Vernunft). São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos.
(Trad. A. Morão). Lisboa: E. 70, 1988.
NIETZSCHE, Friedrich. Os filósofos trágicos. [Trad.
R. R. Torres Filho]. In SOUZA, José Cavalcante de [org.] Os pré-socráticos. São
Paulo: Abril Cultural, 1973.
RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da
natureza. [J. Pires: Philosophy and the mirror of nature]. Lisboa: D. Quixote, 1988.
WATANABE, Lygia Araujo. Filosofia antiga. In CHAUÍ,
Marilena et al. Primeira Filosofia: lições introdutórias. Sugestões para o
ensino básico de Filosofia. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 13-35.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2.
ed., São Paulo, Abril Cultural, 1979.
ARTIGO 02
PARA QUE FILOSOFIA DO DIREITO? ATITUDE
FILOSÓFICA: INDAGAR[2]
Fábio Henrique
Cardoso Leite
“O que pretendo sob o título de
filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E, contudo não
sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo deixou de ser
um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem
chamar filósofos, estão contentes com as suas definições”. (Husserl)
A
pergunta “Para que Filosofia do
Direito?” tem sua razão de ser. A resposta para esta pergunta, podemos
definir da seguinte maneira: A filosofia
do Direito parte de dogmas pré-estabelecidos para indagações, transcendendo o
conhecimento positivo através de uma análise crítica, que levará a um
conhecimento mais completo e justo tanto da interpretação como da
aplicabilidade das leis. Daí, a fundamental e
absoluta importância do direito, que, por seu caráter universal, torna-se
passível de uma investigação filosófica em busca da realidade jurídica. Como
podemos perceber o conhecimento que não é dado a nós, seres humanos, como uma
faculdade inata, produzida naturalmente por herança genética e crescimento
biológico. Nós precisamos aprender a
pensar e nos dedicamos a isso ao longo de toda a nossa vida. Essa
aprendizagem depende de duas coisas: da convivência
com outras pessoas e da reflexão
sobre nossos próprios pensamentos. Se nos inspirarmos nas origens do
pensamento ocidental verificamos que a palavra Filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria. Os
primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados de sábios, por terem
consciência do muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da
sabedoria, ou seja, filósofos.
Ao
tentarmos definir o que é Filosofia, somos projetados diretamente para dentro
da filosofia, ou seja, somos levados a filosofar. O que
teria marcado o surgimento da filosofia seria precisamente a colocação desta
pergunta sobre o ser, sobre o Ser do que é (=os entes, as coisas) e,
posteriormente, sobre o Ser em si mesmo considerando, como diverso do não Ser.
A primeira dessas indagações aparece historicamente naqueles pensadores que
formaram a chamada Escola Jônica, na
Grécia do séc. V a.C., encabeçada por Tales
de Mileto, seguido por Anaximandro e Anaxímenes, que com ela desenvolveram um
estudo da física, ao procurar estabelecer o(s) princípio(s) que governava(m) a
organização cósmica. A segunda pergunta aparece no famoso poema de Parmênides[3], e
instaura um tipo de reflexão que, posteriormente, passará a se chamar de
metafísica.
A
pergunta por “o que é isto, a
Filosofia?” não só nos remete aos primeiros filósofos, mas também a outros,
bem mais próximos de nós, no tempo e no espaço. Isso porque essa pergunta foi
colocada pelo filósofo contemporâneo Martin Heidegger. Por outro lado, se dissermos
que é próprio da filosofia indagar “o que é isto: um ente” e “o que é que é Ser”, e se fizermos a
pergunta se voltar sobre ela mesma, à filosofia, perguntando “o que é isto, a filosofia, que indaga sobre
o que é isto e o que é que é Ser?”, estamos nos propondo a “discorrer filosoficamente sobre a
filosofia”.
O
trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a
filosofia esteja à margem do mundo, nem que ela constitua um corpo de doutrina
ou um saber acabado com determinado conteúdo, ou que seja um conjunto de
conhecimentos estabelecidos de uma vez por todas. A teoria do filósofo não
constitui um saber abstrato. O próprio tecido
do seu pensar é a trama dos acontecimentos; é o cotidiano.
Por isso
a filosofia se encontra no seio mesmo da história. No entanto, está mergulhada
no mundo e fora dele: eis o paradoxo enfrentado pelo filósofo. Isso significa
que o filósofo inicia a caminhada a partir dos problemas da existência, mas
precisa se afastar deles para melhor compreendê-los, retornando depois a fim de
subsídios as mudanças.
No campo
da ciência, a filosofia está ligada à ciência, sendo o filósofo o sábio que
reflete todos os setores da indagação humana.
A partir
do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu Galilei promove a
autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Na verdade o
que estava ocorrendo era o nascimento da
ciência, como entendemos modernamente.
A
filosofia trata da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas que as
ciências se especializam e observam “recortes”
do real, enquanto a filosofia jamais renuncia a considerar o seu objeto do
ponto de vista da totalidade.
A visão da filosofia é de conjunto, ou seja, o
problema tratado nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob a
perspectiva de conjunto, relacionando cada aspecto com os outros do contexto em
que está inserido.
A
filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de valor. O
filósofo parte da experiência vivida do homem trabalhando na linha de montagem,
repetindo sempre o mesmo gesto, e vai além dessa constatação. Não vê apenas
como é, mas como deve ser. Julga o valor da ação, sai em busca do significado
dela.
Filosofar é dar sentido à
experiência.
É
mister lembrar que a necessidade da filosofia está no fato de que, por meio da
reflexão, a filosofia permite ao homem ter mais de uma dimensão, além da que é
dada pelo agir imediato no qual o “homem prático” se encontra
mergulhado.
É a filosofia que dá o
distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a
que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói
na sua unidade; retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la.
Enfim, a
filosofia é a possibilidade da transcendência
humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada
e não escolhida. Pela transcendência, o homem surge como ser de projeto, capaz de
liberdade e de construir o seu destino.
A filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício
puramente intelectual. Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as
formas estagnadas do poder que tentam manter o “status quo”, é aceitar o
desafio da mudança. Saber para transformar. Depois desta abordagem sobre a
importância da filosofia, podemos adentrar mais diretamente sobre o tema
inicial: Para que serve a Filosofia do
Direito?
O termo Filosofia do
Direito pode ser empregado em acepção lata, abrangente de todas as formas de
indagação sobre o valor e a função das normas que governam a vida social no
sentido do juízo, ou em acepção estrita, para indicar o estudo metódico dos pressupostos
ou condições da experiência jurídica considerada em sua unidade sistemática.
No
primeiro sentido, Filosofia do Direito corresponde em última análise a um pensamento
filosófico da realidade jurídica, e é sob este enfoque que se fala
na Filosofia do Direito. Não se deve estranhar que tenha havido pensamento
filosófico-jurídico desde quando surgiu a Filosofia, no ocidente ou no Oriente,
em cada área cultural segundo distintas diretrizes. Se onde está o homem aí
está o Direito, não é menos certo que onde está o Direito se põe sempre o homem
com a sua inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o
fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua convivência.
Visa a
Filosofia do Direito em primeiro lugar, indagar dos títulos de legitimidade da
ação do jurista. O advogado, ou juiz, enquanto se dedicam às suas atividades,
realizam certa tarefa, cumprem certos deveres. A segunda ordem de questão
refere-se aos valores lógicos da Jurisprudência ou da Ciência do Direito.
A que critérios devem manter-se
fiel o jurista para poder ordenar a experiência social com coerência e rigor de
ciência?
O problema lógico une-se assim ao problema ético, formando ambos um todo
harmônico, unitário, que só por necessidade de análise haveremos de separar. Dessa correlação resulta um perene esforço, quer do
legislador, quer do jurista, no sentido de estabelecer adequação cada vez mais
precisa e prática entre os esquemas lógicos da Ciência do Direito e as infraestruturas
econômico-sociais, segundo os ideais éticos que informam e dignificam a
coexistência humana.
É assim
que exigências lógicas, éticas e
histórico-culturais, compõem a trama dos assuntos fundamentais pertinentes
à Filosofia do Direito.
Um dos
principais juristas contemporâneo, Miguel Reale, procurou mostrar em sua tese
que o Direito é uma realidade tridimensional,
compreendida através da soma de três fatores básicos: fato + valor + norma, (como, a bem da verdade, muitos autores antecedentes
já haviam defendido), associados, por seu turno, entretanto, não através de uma
forma simplesmente abstrata, mas sim num contexto essencialmente dialético,
compreendido pela própria dinâmica do mundo real.
Em sua
explanação teórica, Reale argumentou com mérita propriedade, que os três
elementos dimensionais do Direito estão sempre presentes na substância do jurídico,
ao mesmo tempo em que são inseparáveis pela realidade dinâmica da essência do
próprio Direito, formando o contexto do denominado tridimensionalismo “concreto” que virtualmente se opõe ao
tridimensionalismo “abstrato” que o antecedeu.
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto,
os objetos com os quais a Filosofia do Direito se ocupa, veremos que a atitude filosófica
possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo
investigado.
Essas
características são:
- Perguntar o que a coisa, ou o fato, ou a
ideia, é. A Filosofia do Direito pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é
a significação de alguma coisa, não importa qual;
- Perguntar como a coisa, a ideia ou o valor, é. A Filosofia do Direito indaga
qual a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou
um valor;
- Perguntar por que a coisa, a ideia ou a norma existe e é como é. A Filosofia do Direito
pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia, de um valor.
A atitude filosófica inicia-se dirigindo
essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele.
Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade
de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Neste
sentido, podemos perceber que na esfera
transcendental ou filosófica, o ser do direito a cargo da Filosofia do Direito,
enquanto que a cada uma das dimensões do Direito, - fato, valor e norma – correspondem
uma das partes principais da Filosofia do Direito, ou seja, respectivamente, a
culturologia jurídica (fato), deontologia jurídica (valor) e a epistemologia
jurídica (norma).
É
evidente que estas explicações são realidades que não devem e nem podem ser
vistas e analisadas como estanques. Devem, ao contrário, ser encaradas e estudadas
como visões completamentares do Direito, procurando traduzir a real substância complexa
da verdadeira explicação do próprio fenômeno da existência jurídica.
Espírito Crítico: os
problemas e enfoque do Direito e da realidade jurídica. Inegavelmente, o
substrato da norma jurídica se traduz por seu próprio conteúdo.
O grande
problema que se depara o Direito, entretanto, está justamente na variabilidade
do conteúdo da norma que alcança expressões jurídicas e expressões
não-jurídicas transcendentes, pois a substância da realidade da existência do jurídico
é extremamente complexa e compreende também os fatos sociais e a sua consequente
valoração intrínseca.
Por isso
mesmo, alguns estudiosos entendem que há incontestáveis dimensões e planos do
conhecimento jurídico e, sob esta ótica, Miguel Reale, entre outros, tão
somente procurou polarizar o Direito em três âmbitos fundamentais.
Isto não
quer dizer, todavia que Miguel Reale não possa ser visto também como um
normativista, a exemplo de Hans Kelsen; mas apenas que procurou lançar novas
perspectivas para analisar a realidade complexa do Direito, construindo um
objeto abstrato da ciência (como categoria jurídica), delimitando (para ser
mais bem entendido) e não isolado, permitindo entender melhor as relações internas
do próprio fenômeno Jurídico.
Afinal qual a importância da
Filosofia do Direito? A Filosofia do Direito ou a jusfilosofia, assume cada vez
mais a postura criadora, crítica e de certa forma revolucionária. Inicia-se com
a problematização dos fundamentos epistemológicos do saber jurídico tradicional
e ao fazê-lo internaliza os questionamentos do pensamento social de modo geral.
É
fundamental que a Filosofia do Direito saia das universidades e passe a pensar
o Direito a partir do ponto de vista daquelas classes, se não por uma postura
ideológica, pelo menos para que não fique alheia à vontade de seu tempo. Mas,
de nada adiantará falar sobre uma reforma se
não se estivermos com espírito crítico, imbuído no sentido da Filosofia
Jurídica, imprimida aos novos textos legais. A nova
Filosofia tomada pelo Código implica
modificar a mentalidade do Juiz para fazer atuar o processo como instrumento de
resultado. Terá de se implantar uma nova filosofia nos julgadores para poder dinamizar
a reforma implantada.
Vale a
pena ressaltar que nenhuma lei se esgota por si mesma e não é o seu enunciado
que ditará o rumo exclusivo a ser tomado. A interpretação que vier a ser dada é
que ditará o seu dinamismo. Por isso é que se deve ter o texto legal apenas como um referencial, um norte, que irá
indicar ao intérprete e aplicador o caminho a ser seguido. Cabe aos
juristas, consolidar essas conquistas, reforçando o sentido do Direito também
como um espaço estratégico de extrema importância (política), para a efetiva
transformação da realidade rumo a uma sociedade mais igualitária e democrática.
Enfim, a discussão do valor da Filosofia, deve
ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões,
visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida
como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais
questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação
intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação
mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a
Filosofia contempla, a mente também se torna grande e se torna capaz daquela união
com o universo que constitui seu bem supremo.
A
Filosofia do Direito, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o
conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que
confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um
exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos pré-conceitos e
de nossas crenças.
Após
esta breve reflexão, percebemos que o fenômeno jurídico e a filosofia andam
juntos, e que não podemos fazer operacionalizar o direito sem o mínimo de
conhecimento filosófico. A busca da justiça é um caminho que tem
de ser percorrido de forma consciente. Não podemos nos distanciar da tradição,
da história e dos conceitos elementares. Eis porque a
filosofia nos direcionará à busca do conhecimento do direito. Poderemos sem pretensões
outras dizer: onde está o direito aí estão presentes os elementos de filosofia.
O saber filosófico e o jurídico, na verdade, são complementares. O direito busca
encontrar os elementos de justiça no sujeito para que ele possa ser contemplado
pelo ideal de justiça em sua plenitude.
Por outro
lado, a filosofia, procura na realidade do cotidiano do sujeito estabelecer uma
relação entre a vida presente e as condições históricas do indivíduo.
Ademais, não podemos eliminar as possíveis
relações existentes no campo da compreensão do direito e da filosofia, pois
tanto os mecanismos do direito que regulam os direitos individuais e coletivos do
cidadão, quanto o conhecimento racional da verdade e do próprio fenômeno
jurídico são essenciais na vida dos sujeitos em sociedade.
Bibliografia
ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma
crítica à verdade na ética e na ciência. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 2002.
ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando,
Introdução à Filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1993.
COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 4
ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17 ed. São
Paulo: Saraiva, 1996.
_____________. Teoria Tridimensional do Direito. 5
ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
MENDES, Juscelino V. Zetética e Dogmática.
Página de Juscelino Vieira Mendes, seção “Direito”. Sítio Campinas, 2003.
ARTIGO 03
TRÊS LIÇÕES DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO[4]
WALTER OMAR KOHAN
RESUMO: O
presente trabalho busca pensar o valor de O mestre ignorante como
exercício de filosofia da educação, em particular contrapondo-o a um modo,
dominante, de exercer esse saber no seio de nossas instituições. Trata-se de
uma história singular, pela qual todo mestre pode se perguntar por que e para
que ensina; e, o que é ainda mais importante, pela qual pode questionar-se que
diabos está fazendo consigo mesmo e com os outros, a cada vez que se veste de
mestre em uma sala de aula. Depreendemos, desse exercício, três lições: a) o
mais natural, evidente e aceito socialmente acaba sendo, filosoficamente, o
mais problemático; b) somente pelo paradoxo, entranhados no lodo paradoxal,
podemos encontrar algum sentido na educação; c) só há uma educação que vale a
pena: a que emancipa (sem emancipar). Quem não deixa que os (as) outros (as) se
emancipem embrutece.
Palavras-chave:
Filosofia da educação. Emancipação. Sócrates.
THREE LESSONS OF PHILOSOPHY OF EDUCATION
ABSTRACT: This paper aims to rethink the value of The ignorant schoolmaster
as an exercise in the philosophy of education, especially as counterpoised
to the way philosophy of education is presently exercised in our institutions.
It is a singular story, by which teachers can ask why and for what they teach
and, even more meaningfully,
they can put into question
what they are doing with themselves and with their students each time they
enter a classroom. We can take three lessons from this exercise: a) that the
most natural, evident and socially accepted pedagogical ends appear to be the most
philosophically problematic; b) that only through paradox – through being
thrown into the paradoxical mud – we can find some real meaning in education;
c) that the only education worthy of the name liberates without liberating. The
one who does not allow for the liberation of the others oppresses.
Key words: Philosophy of education. Emancipation. Socrates.
A filosofia da educação ocupa um lugar pouco
interessante no universo acadêmico, ao menos em nossos países hispano-americanos.
Depreciada na imensa maioria dos departamentos de filosofia das instituições de
formação superior, acolhida nos de educação, costuma ser matéria obrigatória nos
cursos de formação de mestres. Tornada, assim, muitas vezes, o único espaço de
contato com a filosofia durante todo o processo de formação, seus docentes,
programas e bibliografia costumam manter, no melhor dos casos, um caráter enciclopédico,
totalizador e fundacionista. Em todo o caso, o repertório não parece muito
variado: aqui, a história das ideias
filosóficas sobre a educação; lá,
correntes do pensamento filosófico sobre a educação; ou, então, o estudo
das divisões mais ou menos claras do saber pedagógico, segundo orientações
bastante clássicas do conhecimento filosófico: um pouco de epistemologia, outro
tanto de axiologia e de ontologia, usadas para explicar o fenômeno educativo.
Dessa forma, o aluno mais afortunado poderá compreender, com a ajuda de um
mestre explicador, um
saber filosófico, histórico ou
sistemático, sobre a educação. Aprenderá a distinguir,
com as explicações que recebeu, escolas
e orientações pedagógicas, períodos, conceitos e categorias, que
habilmente relacionará às correntes de pensamento já instituídas. Para os
menos afortunados, essas mesmas
explicações funcionarão, muito mais simplesmente, como uma espécie de
doutrinação educativa, que os infundirá, brutal ou delicadamente, da firme
crença nos fins, nos valores e nos ideais que deverão passar a perseguir. Esses
modos de ensinar a filosofia da educação não estão isentos de pressupostos
sobre o significado e sentido de ensinar
e aprender a filosofia, assim como sobre suas relações com a educação.
Trata-se, basicamente, de transmitir um certo saber instituído, predeterminado,
que permitirá uma compreensão mais “crítica” do fenômeno educacional ou, simplesmente, compreender a
“verdadeira” missão da filosofia na educação. Nas versões mais aggiornadas,
o saber filosófico toma a forma de conteúdos conceituais ou atitudinais que
contribuirão para a aquisição das habilidades ou competências de pensamento
crítico, por parte do (a)s futuro (a)s profissionais da educação.
Nesse
horizonte, um texto como O mestre
ignorante decerto não encontra posição de comodidade, mas
enfrentará resistências e esquivanças.
Afinal,
não é mais do que uma história, dirão alguns profissionais. Uma fábula, um
conto, uma experiência. Que lugar poderá
manter esta história objetarão certos eruditos, na longa galeria das tradições
rigorosas de ensino, com seus métodos mais ou menos consolidados de transmissão
de saber?
Possivelmente,
entre uns e outros, haverá os que se disporão a admitir algum valor literário
na narrativa de Rancière, considerando-a como uma bela história.
Dificilmente,
porém, algum espaço lhe será reservado nas instituições onde se ensina
formalmente a filosofia da educação. No mais, mesmo os que se atreverem a
fazê-lo deverão arcar com o que advertia o próprio Rancière: não se trata de
institucionalizar nada, inclusive porque
“jamais um partido, um governo, um exército, uma escola ou uma instituição
emancipará uma única pessoa”. (2002, p. 142).
No
entanto, é nesse confronto, no abismo entre duas formas opostas de entender a filosofia
da educação que pretendo situar minha intervenção. Importa-me explorar em que
sentido a leitura de O mestre ignorante pode se constituir em uma
experiência formativa interessante, sobretudo para aqueles (as) que já abraçam,
ou se preparam para abraçar o ofício de ensinar; e, ao fazê-lo, suponho que
poderei contribuir também para problematizar o modo habitual de se entender a
filosofia da educação, particularmente em nossas instituições universitárias.
De resto,
se a empreitada supera de muito a questão puramente disciplinar, é porque o que
está em jogo, quando se lê O mestre ignorante, é o próprio sentido
que assume para nós, que trabalhamos em educação, o exercício do pensamento.
Assim,
considero que um dos principais méritos da obra que Jacques Rancière dedicou à
matéria está na graça e na vitalidade com que propõe uma forma renovadora de
exercer a filosofia da educação.
Nada mais, enfim, do que um exercício.
Pensamento
vivo e em ato. Nada de esquemas, classificações, generalizações. Filosofia em
ato, experiência de interrogação, irrenunciável, sobre a própria experiência.
Exercício singular que dá lugar a um pensamento singular. Singular, como diferente e como comum,
por ser a história de um mestre e não de um indivíduo, uma história cuja
significação não reside nas particularidades de Jacotot, desse ou daquele
mestre, senão de um mestre que encarna, em si mesmo, todo
mestre que dele queira servir-se para se perguntar por que e para que ensina;
e, o que é ainda talvez mais importante, para questionar-se que diabos está
fazendo consigo mesmo e com os outros, a cada vez que se veste de mestre em uma
sala de aula.
Por isso,
como o exercício de um mestre que se
interroga a si mesmo, a leitura de O mestre ignorante pode ser um
belo trabalho de emancipação, em um dos sentidos que Rancière confere à
palavra, em seu livro: forçar uma capacidade ignorada ou negada a desenvolver
todas as consequências desse reconhecimento.
Exercício emancipatório de leitura que nos força a pôr em questão o
modo e o sentido com que ensinamos as forças que nos movem a fazê-lo, as
apostas políticas que, conscientemente ou não, afirmamos em nossa prática. Emancipatório
é o exercício, se nos permite, ao final das contas, de educar sem subestimar
ninguém – começando por não subestimarmos a nós próprios.
De tal
forma que, ainda que se possam distinguir em O mestre ignorante algumas
teses de peso, substantivas (o princípio da
igualdade das inteligências; o “existo, ergo penso”; a explicação como
arte da distância; a relação entre vontade e inteligência; o estatuto político
e filosófico da igualdade etc.), não reside aí o mais interessante da
aposta de Rancière. Ao contrário, são essas teses polêmicas, sumamente discutíveis,
de aceitação bastante difícil, em vista da forma ostensivamente radical e
provocativa com que são expostas. Decididamente, esse livro não foi feito para
suscitar acordos ou consensos. Seria
estranhamente contraditório valorizar sua força explicadora.
Ao
contrário, a potência de O mestre ignorante parece estar situada nos
desacordos que supõe e provoca, no trabalho de pensamento que desencadeia como
expressão solitária, inaudita, dissonante e, apesar de tudo, suficientemente
forte para interrogar uma realidade que desconsidera suas principais
proposições ou, no melhor dos casos, as ignora. A força da narrativa não está,
portanto, na originalidade das teses que avança, senão na radicalidade da experiência que provoca.
Pois –
admitamos de uma vez por todas – todos, em educação, alguns um pouco mais,
outros um pouco menos, afirmamos o que Jacotot nega e desconsideramos o que
mais valoriza. Partimos da desigualdade. Somos formados para explicar o que
aprendemos (a desigualdade). Fomos
explicados e, assim, explicamos. Acentuamos a desigualdade. Voltamos a
explicar. Tudo, então, continua como dantes: não podemos, claro, sair do
círculo do embrutecimento.
Seguimos explicando. Pela vida. Embrutecemos. Nos embrutecemos. Jacotot
nos expõe a nosso contrário. Propicia (força?) um encontro com o que não
praticamos e não valorizamos. E, por essa via, nos leva a voltar a pensar sobre
o modo e sobre o sentido daquilo que fazemos. Não se trata, é claro, de “transformar” o modo como
pensamos o ensinar e o aprender.
Tampouco
está em questão deixar de fazer o que fazemos, para fazer o oposto. Mas,
inversamente, interessa pensar por que essa forma de educação emancipadora se encontra nos antípodas daquilo
que se tornou tão evidente em nossas teorias e nossas práticas. Importa pensar por
que não pudemos pensar que estamos embrutecendo e nos embrutecendo. Contudo,
por mais que definitivamente não seja o caso, aqui, de seguir os preceitos de
um novo método, nem de copiar um modelo, aos poucos vai-se tornando impossível
continuar pensando o que pensávamos e fazendo o que fazíamos.
Desse
modo, a filosofia da educação se
faz exercício que não explica, não legitima, não consolida. Escapa à tentação
de constituir-se como lei e como verdade. Pelo contrário: dessacraliza, polemiza, interroga. Impede que
ensinemos da forma como ensinávamos, que pensemos a educação da forma como a
pensávamos, que sejamos os mesmos educadores que éramos. Permite-nos pensar, ser e ensinar de outro
modo. Essa é, no meu entender, a força emancipadora de O mestre
ignorante. Esse é seu valor filosófico e pedagógico: mergulhar o leitor em
um círculo do qual só pode sair valendo-se de sua própria inteligência. Disruptor dos círculos do óbvio, do normal e do inquestionado
que habita em nós, esse outro círculo faz da emancipação uma questão de
sobrevivência.
A
INFLEXÍVEL IGUALDADE DO EXERCÍCIO: O ANTI-SÓCRATES
Esse
exercício de filosofia da educação
tem como ponto inflexível, irrenunciável, a igualdade – princípio, opinião,
pressuposto, algo que não tem valor de verdade, que não pode ser demonstrado,
mas sem o que não pode se fundar, na perspectiva de Rancière, uma educação radicalmente
diferente daquela dominante, e que segue a lógica da superioridade-inferioridade.
Para
Rancière, quando a igualdade é colocada como objetivo, ou finalidade, e não
como princípio, afirma-se a lógica desigualitária que a nega. Precisamente na
relação com a igualdade define-se o caráter conservador, ou revolucionário de
um (a) educador (a). Será liberador (a) aquele que, partindo da igualdade, a
verifique e permita, assim, perceber a potência não inferior de toda
inteligência. Qualquer outra relação com a igualdade que não seja a de
princípio é, para Rancière, embrutecedora.
Dessa
forma, a igualdade é, ao mesmo tempo,
condição e limite para um modo de praticar a filosofia da educação: por um
lado, é aquilo que, na ótica de Rancière, permite pensar filosoficamente a
educação; mas é também aquilo sem o que não se pode pensar a educação como tal.
A igualdade é o axioma do pensamento, seu fundo, o não-filosófico que abre
espaço para a filosofia. Paradoxo da igualdade.
Talvez seja interessante apreciar
o peso da figura de Sócrates nesse exercício. Sabemos o papel singular, fundador, paradoxal, de
Sócrates em nossa tradição de filosofia da educação. Singular porque
incomparável, fundador porque inaugural, paradoxal porque, sendo reconhecido
por todos como o primeiro filósofo da educação, exercita uma filosofia da educação
contrária a de seus próprios celebrantes.
A tentação de
assimilar o mestre ignorante a um Sócrates modernizado é grande, fácil,
imediata. Rancière arremete, no entanto, contra o ídolo, desfazendo-o política
e filosoficamente. Não perdoa sua veia desigualitária. Reprova sua paixão pela
superioridade e inferioridade.
Enfim,
por trás de sua declaração de ignorância, Sócrates, o divino, dá fé ao oráculo:
pensa que é o mais sábio, na pólis, e que sua tarefa consiste, justamente,
em mostrar aos outros o pouco valor de seu saber, sobretudo quando comparado ao
saber do próprio Sócrates. Sócrates não é um mestre ignorante; é um sábio
mestre de sua ignorância. Pretende impor, como todos os mestres da tradição,
seu saber aos demais. O modo como Sócrates oculta o caráter embrutecedor de seu
saber o torna mais sofisticado e dissimulado. E, portanto, mais perigoso.
Todos os
que se entretêm com Sócrates, nos Diálogos de Platão, têm algo – o mesmo
– a aprender. Não importa se, de
fato, o diálogo chega a um saber conclusivo ou a uma aporia: todos devem
aprender que aprender com a filosofia, com Sócrates, significa deixar de saber
o que se pensava saber; todos devem saber que, para aprender o saber
filosófico, é preciso acompanhar o caminho do mestre, deixar-se levar por ali
onde o outro, aquele que sabe, deseja ir.
O escravo do Mênon é
emblemático: não só não aprende nada por si, mas
aprende que, para aprender, necessita de alguém que o leve pelas mãos: alguém
como Sócrates, que bem sabe aquilo que ele, de todo modo, deveria aprender. O
escravo também aprende sua ignorância, e a sabedoria do mestre: aprende que,
para aprender, deve seguir outra inteligência, a do mestre. Assim, o diálogo com
Sócrates aprofunda sua escravidão. Reforça-a, embrutecendo-no.
Mas, o
que é ainda pior, Sócrates esconde sua paixão embrutecedora debaixo de uma
aparência libertadora. Seu disfarce, suas máscaras, a maneira como oculta sua
paixão desigualitária o tornam mais perigoso. Contudo, para qualquer observador
interessado na emancipação, fica claro que Sócrates embrutece: não pergunta
o que ignora, para saber e para instruir-se, mas sempre pergunta aquilo que
sabe, para que os outros “recordem” o que ele já sabe e, sobretudo, para que
todos verifiquem que somente ele detém o saber que vale alguma coisa.
Sacrílego saber da ignorância. Dizia que nunca buscou ensinar, mas sempre
soube, de antemão, aquilo que os outros deveriam saber. Indigno saber da ignorância.
Amante do saber da ignorância pretendeu que todos amassem seu saber. Perverso
uso da ignorância. Seguidor do oráculo, valorizou unicamente o saber que
legitimava seu próprio saber. Embrutecedora política do desprezo.
AS LIÇÕES DE UMA LEITURA
Ainda
essa vez, Rancière nos remete ao que queremos ou não queremos ser, como
mestres.
Pois, que mestre jamais pretendeu
ser como Sócrates?
Quem jamais se deleitou com sua
mentirosa ignorância?
Quem nunca quis vestir o mesmo
disfarce do perguntador que não pergunta?
Ainda
essa vez, situando-se nos antípodas do
sentido comum pedagógico, Rancière nos faz mergulhar em um círculo que
somente podemos romper por nós.
Primeira lição (filosófica) do ignorante: o mais natural, evidente e aceito pedagógica e
socialmente acaba por se mostrar o mais problemático filosoficamente. Ao mesmo tempo em que O mestre ignorante nos põe face
ao incômodo de perceber nosso contrário, problematizando nossas obviedades,
acompanha-nos na abertura de sentido que propicia a percepção do paradoxo, permitindo-nos
pensar o caráter constitutivamente paradoxal do ato pedagógico. Pois
Jacotot nos mostra, por exemplo, como a ignorância é, a uma só vez, necessária
e impossível para o ensinar, do mesmo modo que o axioma igualitário e a emancipação
são necessários e impossíveis para a ordem social. Algo que só pode ensinar
quem nada tem a ensinar. Porque ensinar de verdade, diria Rancière, não pode
significar nada que tenha a ver com transmitir, senão com permitir que o outro
se emancipe.
Segunda lição (educacional) do ignorante: somente pelo paradoxo, entranhados no lodo
paradoxal, podemos encontrar algum sentido na educação. Finalmente, a lição
da emancipação de um mestre que se emancipa a si próprio, que ensina com seu
próprio método, isso é, sem método. Que ensina
também que a emancipação não tem a ver com um conteúdo, uma doutrina ou um
conhecimento. Que ninguém pode
emancipar ninguém. Um mestre que escreve sua
própria história, para que os outros a leiam. E outro mestre lê a história,
reflete sobre ela e a relata para que outros (as) mestres a pensem. E se
emancipem, na contradição e no paradoxo. Afinal, um ser humano pode o
que pode qualquer ser humano.
Terceira lição (política) do mestre ignorante: só há uma única educação que vale a pena – a que emancipa (sem emancipar). Quem não deixa que os (as) outros (as) se emancipem,
embrutece.
Três
lições para a filosofia, à educação e a política. Lição de política para a
filosofia da educação. Lição de filosofia para a política da educação. Lição de
educação para a política da filosofia. Lições de uma experiência de filosofia
da educação.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco
lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002. (Série: Educação. Experiência e sentido)
ARTIGO 04
ÉTICA E ADMINISTRAÇÃO:
CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO
SOBRE OS DESAFIOS DA ÉTICA NO
Amadeu
de Farias Cavalcante Júnior
RESUMO: A ética tem se colocado como um eixo
fundamental para que o homem possa conviver bem em sociedade, dentro de
parâmetros voltados para o dever de agir de acordo com o bem comum entre os
homens, e em concordância com os valores morais que prezam pela ação virtuosa
preocupada com o bem entre os diferentes. Mesmo sabendo que a reflexão ética se
apropria dos valores morais considerados bons, no sentido de uma ciência do
comportamento moral do homem em sociedade, admitimos que a dificuldade de se
pensar a ética no mundo dos negócios está no fato de que o mundo da
administração em organizações econômicas e complexas, muitas vezes exige
posturas do administrador que possam dar conta de enfrentar os desafios
colocados por uma ação pautada na “ética convencional”, e de uma ação pautada
nas exigências do mundo dos negócios, ou uma “ética dos negócios”.
PALAVRAS-CHAVE: Ética profissional, ética nos negócios, ética da
responsabilidade, administração.
INTRODUÇÃO
O senso comum propaga que nos dias em que
vivemos não existem mais tantas pessoas crédulas pelos princípios ético-morais,
pelas circunstâncias que levam os homens nas condições da sociedade contemporânea.
A generalização, porém, parece absurda. Por quê? Porque
faz da venalidade uma linha congênita dos homens. A razão disso,
entre outras, se deve a fatores que demonstram o quanto os agentes sociais
ficam expostos a ações sem idoneidade, ou de suspeição, ou mesmo de mecanismos
sociais e econômicos que seduzem à corrupção. Isto vem demonstrando o
quanto nossas instituições públicas e privadas, bem como empresas de variadas
espécies, são colocadas diante do crivo da avaliação por membros externos e
internos, no que remete à aceitação ou aos desvios das normas considera dos
como padrões sociais de condutas morais e éticas. De fato, em contextos de
competições aguçados pela falta de empregos, pela ganância do lucro imediato,
pela questão do poder econômico, e pelas condições “sufocantes” da economia e
da necessidade de negociar com agentes que nem sempre se pautam pelas
exigências éticas, enfim, podemos dizer que em várias situações a consciência
dos administradores pode ser sempre colocada à prova.
A
discussão que se tem propalado nos meios acadêmicos e na literatura recente
sobre o assunto não tem deixado de fora o problema da ética e suas exigências
pela boa conduta, e nem a difícil reconciliação destas exigências no mundo do
mercado. Os conflitos se dão quando os administradores se veem encurralados
pelas necessidades do mercado e as consequências que certas decisões podem
causar na vida de quem participa da organização empresarial, sejam por meio dos
seus membros diretos como empregados, fornecedores, outras empresas que mantêm
relações comerciais, empresários; ou indiretos, tais como clientes, e a
sociedade beneficiada por determinado produto.
O cerne
da discussão ética empresarial tem
tomado ênfase e se espalhado nos currículos das faculdades de administração no
Brasil e no mundo, pois, como vem demonstrando os estudiosos do assunto
(MOREIRA, 2002; NASH, 1993; SROUR, 2000; SINGER, 1998; SÁNCHES, 1998), as práticas empresariais passaram a ser vistas
de forma mais questionável, bem como as práticas e decisões de administradores
que se escondem por trás das empresas. Tais práticas podem ser assim
enumeradas, para título de exemplificação: subornos para dirigir licitações públicas;
desvios de somas altas do erário público; sonegação fiscal; espionagem
industrial e econômica; falsificação de medicamentos, de alimentos, roupas;
“doações” para financiar campanhas políticas a candidatos que ofereçam alguma
contrapartida a empresários; exploração do trabalho infantil ou assalariado;
falta de incorporação da qualidade real nos produtos apresentados à população;
não apresentar ou ocultar informações que dizem respeito à saúde pública da sociedade
e danos ambientais causados, segundo diz Srour (2000, p.24), apontam apenas
para um dos problemas comuns da administração empresarial, ao qual tem sido
vista pelas lentes da sociedade de forma mais moralista, levando inclusive
empresas a fecharem suas portas por causa de danos surtidos no âmbito da
opinião pública.
POR QUE A EXIGÊNCIA DA ÉTICA NOS NEGÓCIOS ATUALMENTE?
Como
podem ser compreendidas de forma crítica estas questões que dizem respeito ao surgimento
da discussão sobre a ética, ou da ética empresarial? Tais problemas podem ser vistos
como partes de exigências que se tem feito por agências de controles sociais,
tais como a mídia, e pela necessidade de que os negócios feitos pelas
iniciativas de administradores visam uma postura ética
mais exigente em função da necessidade de transparência na tomada de decisões, e
da qualidade dos produtos, dentro do contexto de um mercado mais exigente.
Mas não é só isto, é preciso entender o “jogo
do poder” e das relações morais
que se ocultam, muitas vezes, para que se possam dar margens a mecanismos
funcionais que mantenham as empresas sobrevivendo num mundo competitivo. É
como se propalasse uma lei do mais forte num mundo dos negócios em que, para
não cairmos na tentação de sermos ingênuos, as condutas morais por si só não
bastam para justificar a complexidade da competição no mercado. Para aqueles administradores que ainda se pautam por ações
idôneas, os discursos dirigidos podem se pautar na ética, mas as práticas
mostram que [...] os praticantes de algumas dessas ações sentem-se justificados
pela moral do oportunismo, de caráter egoísta e parasitário, que vige de
maneira oficiosa [...]. Mas, é indispensável ressaltá-lo, tais agentes não
assumem publicamente os atos que praticam nem se vangloriam deles. O que isso sugere? Que eles têm consciência da natureza clandestina do que
fazem, apesar de dispor de um arsenal de racionalizações para persistir em sua conduta.
Vale dizer, as morais são formas de legitimar decisões e ações, porque operam
como discursos de
justificação. (SROUR, 2000, p.25).
Desse
modo, segundo o autor, pagar a conta ao médico sem “recibo” para sonegar imposto,
ou como no caso do administrador que gesta seu negócio sem o uso de notas
fiscais para escapar do fisco; ou o suborno de um guarda; ou como no comércio
do mercado paralelo do dólar que, apesar de ser considerado imoral (segundo a moral
da integridade), é vista como legítima pela moral oficiosa do oportunismo.
Administrar empresas exige estar atento aos problemas gerados pelas exigências
de condutas morais na sociedade. É por isto que nem tudo pode ser tão
transparente, no sentido de que o público possa fazer uma avaliação moralista e
injusta, e nem tanto oculta, a ponto de não esclarecer sobre os problemas
relativos aos produtos vendidos à sociedade. A ética dos negócios se situa
dentro de exigências demarcadas pela opinião moral social e pela compressão da
competitividade.
Por
diversas razões, que vão desde o problema que envolve a eterna sede pela busca do lucro e a ganância, até os códigos
corporativos de empresas que só sustentam suas próprias necessidades de se
manter no mercado a qualquer custo, pensamos que a administração e a moralidade,
a ética e os negócios, têm tomado o aspecto de contradição e de distâncias em
relação aos problemas éticos. No mundo dos
negócios, o administrador se vê pressionado pela necessidade de negociar,
juntamente com as exigências econômicas da empresa e da sociedade. Muitos podem
estar convencidos de que devem guiar-se por altos padrões éticos, mesmo sabendo
que outros não estão interessados em conciliar ética e necessidades econômicas.
Há administradores que julgam que a conduta moralmente correta se restringe a
um plano de ação meramente pessoal, enquanto outros acreditam na irreconciliação,
uma vez que defendem que é moralmente aceitável mentir nos negócios
justificando a sobrevivência econômica.
Os
desafios do mercado atual, as falhas éticas, os desvios de condutas nas
empresas, colocam dilemas éticos que exigem uma mudança de postura de acordo
com certa noção de “integridade”, em concomitância com uma “ética dos negócios”,
pressionados por mudanças no mundo do mercado e exigências ocorridas na
sociedade civil organizada. Como diz Nash (1993, p.5), o administrador moderno, junto com a empresa
moderna, devem cultivar valores mais “altruístas” no sentido de atualizar
valores que preservem o “bem comum” nas suas decisões:
“A integridade nos negócios hoje exige capacidades incrivelmente
integrativas; o poder de manter junta uma infinidade de valores importantes e quase
sempre conflitantes; e exige o poder de colocar na mesma dimensão a moralidade
pessoal e as preocupações gerenciais. Nenhum administrador pode se dar ao luxo,
do ponto de vista econômico ou moral, de manter suas noções morais em
compartimento fechado...”
Todo
administrador enfrenta o desafio de ter que tomar decisões que muitas vezes
escapam ao seu controle total, mas que não deixam de ser problemáticas. Por
isso, suas escolhas podem afetar direta ou indiretamente membros internos, ou a
sociedade. Suas decisões devem estar alinhadas a mudanças e exigências
ocorridas na sociedade, sintonizadas com uma série de rigores legislativos que
tendem a punir empresas que tomam decisões danosas. Neste aspecto, a “ética nos negócios” aparece dentro
de um contexto demarcado no capitalismo atual nas últimas décadas, e não porque
houve uma necessidade de cada administrador agir de acordo com o “bom mocismo”.
O que é a ética nos negócios? Segundo
Nash (1993, p.6):
“Ética nos negócios é o estudo da
forma pelo qual normas morais pessoais se aplicam às atividades e aos objetivos
da empresa comercial. Não se trata de um padrão moral separado, mas do estudo
de como o contexto dos negócios cria problemas próprios e exclusivos à pessoa
moral que atua como um gerente desse sistema”.
A mudança
de preocupações na ética nos negócios atesta a mudança ocorrida nas formas macro
sociais do capitalismo recente. Segundo Nash (1993, p.7-22), os contextos das
décadas de 60 a 90 são marcantes para a mudança de percepção das empresas e das
relações comerciais sobre a questão da ética nas relações comerciais. No
período que abarca a década de 60,
marcado pela guerra do Vietnã, levantaram indignação da opinião pública o
desperdício com a indústria bélica e seu crescente poder de destruição de massa
e o potencial de destrutividade das multinacionais no exterior. Fruto da
uniformização cultural advinda dessas relações fizeram com que os
administradores enfrentassem problemas no sentido de que não só as relações
econômicas estavam se expandindo para exploração de mercados com mão de obra
mais barata, como enfrentaram questões relativas aos danos ambientais e ao
controle da poluição ambiental, e suas respectivas exigências legislativas
ocasionadas pela necessidade de reformas da consciência social.
Nos anos 70, continua a autora, o corporativismo
de grandes e médias empresas passou a ser vigiado em função de uma consciência
cada vez mais acentuada por causa de escândalos públicos e subornos de toda
ordem. Os problemas internos de uma empresa capitalista, junto com suas
contradições, antes eram vistos apenas pelos empregados ou por analistas
sindicalizados. O escândalo de casos como o Watergate, nos EUA, expondo a
corrupção do aparelho público, fraturaram a confiança nas administrações de negócios.
Os administradores se veem pressionados a rever seus códigos internos de
condutas morais e éticas, e passaram a assumir as exigências por transparências
nas negociações devido ao crescente movimento de consumidores exigentes de uma
nova conduta de empresas que agiam de forma ilícita, enganando ou causando danos
sociais ao desenvolvimento, ou agindo de forma ideológica por meio de propagandas,
de embalagens, de rótulos, visando ludibriar o público.
Os temas
relativos à defesa do consumidor e as diferenças culturais no exterior
continuaram a dominar a ética nos negócios na primeira metade da década de 80. Isto exigiu mudanças na mentalidade
das empresas, o que deu outro perfil ao capitalismo em expansão. Segundo Nash (1993,
p.8), a preocupação central da moral coletiva centraliza seu foco de atenção em
torno da “capacidade moral dos
indivíduos”. Os conflitos de interesses, o comportamento ganancioso e
individualista de administradores que lesavam interesses públicos, aquisições
ilegais de bens junto com a mentira, vieram à tona e romperam o véu ou o mito
da administração e do administrador como portadores de caráter de
impessoalidade que cercava as discussões da ética nos negócios.
A questão da ética nos anos 90 foi uma busca por um conjunto de
premissas gerenciais que pudessem estimular o administrador a uma busca e
valorização pela integridade pessoal, uma vez que a empresa pode ser censurada
por isso, e dando uma resposta aos outros de acordo com o contexto de
competitividade empresarial. Neste contexto, surge a discussão em torno de uma ética
que possa enfrentar as convulsões da economia, onde o administrador possa
enfrentar os dilemas da ética e da economia e reconciliar com questões sociais.
A “ética convencionada”, como resposta a
todos os problemas empresariais, fornece uma combinação entre a motivação do
lucro e o espírito altruísta embebido pela necessidade de cooperação e
confiança, e possui dois aspectos fundamentais:
Primeiro, não percebe o lucro e outros
retornos sociais como objetivos absolutos pelo administrador;
Segundo, aborda as relações empresariais
como questão de relacionamento com o público, priorizando uma visão humanista.
A ética
nos negócios ganha mais credibilidade quando se projeta sua “imagem” de acordo
com as exigências sociais do que com a natureza do capitalismo (NASH, 1993,
p.19). Como
resume Nash (1993), o impacto dessas mudanças não é apenas econômico. Elas significam
perigo para a capacidade moral das empresas e dos que nelas participam. Não
atender certas exigências se torna danoso para a imagem social das empresas. A
tecnologia e a complexidade financeira, as fraudes recorrentes, as novas
preocupações ambientais e legislações mais rígidas, a educação de consumidores
esclarecidos pela qualidade dos produtos, o turbilhão das economias e a
competitividade que chega a fechar empresas e corporações, e a desmoralizar administradores,
enfim, sobretudo o fator de confiança ao quais os
consumidores chegam a depositar nas empresas avaliando suas funções do ponto de
vista moral, tudo isto somado a outras questões dão origem a uma necessidade de
discussão e de efetivação da “ética nos negócios” sobre o risco de serem
penalizados por desvios cometidos. A ética nos
negócios é tão fundamental para a sobrevivência de empresas pela simples
necessidade de se autopreservarem no mundo das transações comerciais.
A SEDE PELA ÉTICA
A sede
pela ética se justifica para os administradores devido aos enfrentamentos
complexos que suas escolhas e decisões podem causar. O trabalho do administrador está sujeito, sem dúvida, a avaliações que
tendem a julgá-lo moralmente. Se sua postura moral não estiver de acordo
com o que a opinião pública considera como padrão de conduta moral legítima,
então a vida de seu empreendimento estará comprometida, mesmo que isto se faça
por meio de uma mídia que denuncia sem fundamentos e injustamente uma causa,
como foi o caso que ocorreu com os administradores de uma escola. Vejamos:
Basta citar o famoso caso da
Escola Base, no Bairro da Aclimação em São Paulo, em março de 1994, quando os
donos do estabelecimento foram acusados, de maneira infundada, de estarem
envolvidos em práticas de abuso sexual de crianças (...).
Mesmo sem provas concretas, o delegado e duas
mães de aluno passaram informações à mídia que a divulgou sem prévia apuração
da veracidade dos fatos. Em razão da exploração sensacionalista das denúncias,
a repercussão foi devastadora. Os acusados chegaram a temer linchamento, apesar
de se declararem inocentes (...). Três meses depois, as novas investigações
provaram que tudo não passou de uma série de erros das mães, do delegado e da
imprensa, que noticiou a versão que lhe foi passada sem questioná-la, chegando
até a incentivar a violência física contra os acusados. A casa em que
funcionava a escola foi depredada na época das denúncias; os indiciados
perderam seu negócio e tiveram de reformar o imóvel que era alugado, tomando
dinheiro emprestado. Por fim, com as reputações destroçadas, não conseguiram reconstruir
suas vidas cinco anos depois do episódio, apesar do fato de, em dezembro de
1999, o Tribunal de Justiça de São Paulo ter fixado uma indenização de cem mil
reais por dano moral para cada uma das vítimas (a serem acrescidos de juros e
correção monetária). O Tribunal também decidiu que os danos materiais seriam
ressarcidos. (in SROUR, 2000, p.23).
A ética
nos negócios empresariais não é imune, pois carrega um peso muito vasto no poder
que certas decisões têm der causar impactos que irradiam seus efeitos à
distância. Daí a preocupação das empresas pela formação ética de seus
funcionários. Em termos práticos, afetam o que se chama de stakeholders (SROUR,
2000, p.41), ou seja, os agentes direta e indiretamente ligados às decisões
organizacionais ou de gestores administrativos. São eles, na linha interna:
trabalhadores, gestores, proprietários; e na externa: clientes, fornecedores,
prestadores de serviço, autoridades governamentais, entidades da sociedade civil,
tais como movimentos sociais de defesa dos direitos dos consumidores, sindicatos,
meios de comunicação, entre outros. Quando falamos em contextos sociais de riscos
para as empresas e para a tomada de decisões pelos administradores estamos nos
referindo aos encargos e ônus da culpa que precisam assumir por algo visto como
antiético. Isto representa uma forma de mostrar que a empresa tem lealdade com
os clientes, e um nítido espaço para a “ética
nos negócios se justificarem”.
No caso
de uma administradora de recursos de terceiros, como uma corretora ou banco,
como administrar os conflitos financeiros entre esta e os clientes? É claro
que em função de interesses particulares as informações sigilosas dos clientes
podem terminar nas mãos de administradores em proveito próprio. O sigilo se
estabelece pela “Muralha da China” que, segundo Srour (2000, p.37), evita a
invasão nas informações do cliente, isolam informações públicas das privadas,
estabelecem barreiras tecnológicas e físicas, dividindo departamentos e
proibindo acessos, criando dispositivos de vigilância dos próprios
funcionários, criando departamentos de fiscalização com autonomia para
controlar saltos sobre a “muralha”. A lealdade é devida
aos clientes e investidores, mostrando que a ética nos negócios tem também a
nítida cautela pela preservação de sua permanência num mundo exigente de segurança
e onde o “poder do mercado” pode detonar resultados negativos do ponto de vista
econômico e moral.
A ética
empresarial, como toda moral, é historicamente compreendida de acordo com sua
função no mundo, pressionada por outros valores regidos pelo mercado. Neste
aspecto, quando uma administração assume uma postura de vigilância interna de
seus funcionários, em função da ética nos negócios, é difícil imaginar que ela
tome partido do “bom-mocismo”, pois como se colocam em termos políticos e
sociológicos, “é mais crível aceitar que ela tenha conjugado seu credo organizacional
— que considera a empresa responsável pelos clientes, empregados, comunidade e acionistas
— com uma análise estratégica da relação de forças no mercado” (SROUR, 2000,
p.42).
Fica mais
fácil imaginar que a “ética nos negócios”, pressionada pelo mercado e por
transformações ocorridas no seio social, tem sido fruto de um contexto
histórico bem demarcado e de uma dinâmica social precisa, conforme dissemos até
aqui. Neste sentido, o credo organizacional de administradores e de empresas se
viu tomado pela necessidade de se voltar para uma nova perspectiva social, que
criou a mentalidade da “responsabilidade social”, a busca pela formação de
padrões de condutas éticas de seus funcionários (mesmo que seja apenas como
discurso) e a introdução de mecanismos que prezam pela valorização da opinião
pública sobre os produtos da empresa.
A bem da
verdade, em ambientes competitivos, as empresas têm uma imagem a resguardar,
uma reputação e uma marca. A ampliação dos direitos deu condições para que a
sociedade reunisse elementos para se mobilizar e retaliar empresas socialmente
vistas como irresponsáveis e inidôneas. A cidadania organizada e educada,
associando a isso o crescente custo da vida social, exige uma postura dos
dirigentes e administradores para agirem de forma mais responsável. Neste aspecto,
enveredamos nesta discussão a fim de mostrar como se situa a mudança de
mentalidade de uma ética empresarial meramente preocupada com os interesses próprios
pelo lucro e a eficiência, e passamos a entender que as mudanças ocorridas nas
esferas sociais mais amplas exigiram uma transformação da postura em torno da
ética empresarial.
Como diz
o estudo da professora de administração Laura Nash (1993), podemos perceber uma
reflexão nesse campo, que tem discutido que os objetivos das empresas devem
mudar suas condutas para uma ética mais responsável com o social, definindo
objetivos que possam transcender a mera funcionalidade dos negócios. Segundo
diz Nash (1993, p.24-25), “as declarações de objetivos empresarias é, em sua
natureza, funcional e mais do que ética”, ou que as empresas buscam nos seus
negócios apenas a “excelência, sem nunca definir o objetivo geral que se visa
com tais atividades”, pois é preciso entender a atividade da administração e da
empresa como “uma entidade social... uma organização de pessoas onde as ações
de uns têm efeito sobre o bem-estar e os direitos dos outros”. Em outros
termos, estas exigências têm refletido mudanças exigidas pela sociedade civil
como possibilidade de fazer “política pela ética” e viabilizar
aos empresários posturas éticas nos seus negócios, bem como posturas morais das
empresas por meio de intervenção social (NASH, 2000, p.43). Vamos
simplificar a questão mostrando no fluxograma abaixo, em que as agências de
controle (PROCON, organizações sociais, tribunais de justiça, leis ambientais,
centros de vigilâncias sanitárias, ONGs, mídia, entre outros) efetuam um
trabalho de pressão política por uma ética nos negócios.
A NECESSIDADE DA ÉTICA: O MUNDO NÃO GIRA SOMENTE EM
TORNO DE NÓS
Como
vivemos em permanente contato com as pessoas, envolvidos por costumes e tradições
culturais e morais quase sempre presentes em nossas convicções, e pontos de
vista bastante variados, as questões morais escondem-se em muitas decisões e
ações do cotidiano empresarial. Como em qualquer outro meio, no mundo das
negociações e do trabalho, envolvendo relações que exigem um cumprimento
razoável de valores éticos e morais, não é sem fundamento que os discursos de
muitas iniciativas empresariais têm evocado a imagem das empresas afinadas com
as exigências do mundo da ética nos negócios, desejando que funcionários e
clientes possam estar em concordância com valores defendidos, como a probidade,
a honra, o compromisso, a decência, a retidão, a licitude, o respeito e a
verdade. Isso tem soado como expressão da ética empresarial sintonizada com os
costumes e a moral vigente, tal como exigida historicamente pelas agências de controles
sociais.
Nas
transações que seguem importâncias econômicas, é natural que os interesses egoístas
possam prevalecer como desvio de conduta, mas que passam a serem moralmente
reprováveis quando se tornam públicas.
Neste sentido, o que estuda a
ética, e, sobretudo, a ética empresarial? A ética tem servido como uma ciência prática,
segundo a definição do filósofo Aristóteles, que foi formulada como reflexão
sobre o comportamento virtuoso ou não, ético ou não, dos agentes sociais que
adotam padrões de condutas morais segundo normas sociais convencionadas como
boas ou más. Ela serve também para estudar as normas morais históricas. E o que são as normas morais que pautam comportamentos dos indivíduos?
São códigos formalizados, expressam valores; o conjunto de normas e regras
destinadas a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social dada; ou
os discursos que são internamente coerentes com os princípios e propósitos os
quais visam se tornar socialmente validados, e ao mesmo tempo, como aqueles
meios que propiciam aos indivíduos se comportarem e se conduzirem a partir de
determinadas formas diante de outros e mediante uma rede de relações sociais
(SÁNCHES, 1993, p.24).
Defesa Pressão Política pela Ética
nos Negócios
|
Sociedade civil organizada
Mídia, Tribunais, Legislação, Movimentos
Sociais, Ag. De defesa
|
Poder de Exigência
|
Percepção das estratégias dessa lógica.
Aderem ao comportamento social responsável: a
Ética nos Negócios converte-se em estratégia empresarial e profissional.
|
Por isso,
a ética visa também fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral;
com que propósito? Reprovando
aqueles comportamentos morais que não tomam o partido de justiça e do que é socialmente
bom para o homem; ou refletindo sobre as amarras que fazem os agentes sociais
ficarem presos ao egoísmo ou àquilo que faz com que o indivíduo não se importe
com os outros. Cabe-nos estabelecer uma distinção entre o que é da
competência da ética e o que é da competência da moral. Como diz Sánches (1993,
p.7) “à respeito da diferença dos problemas prático-morais,
os éticos são caracterizados pela sua generalidade”, ou seja, se na vida
real o indivíduo se depara com desafios e obstáculos, que são práticos, então
deverá resolver por si mesmo, pela via moral, como diz Sánches, e com a ajuda
das normas sociais. Já o problema sobre como agir diante de determinada
situação em que lhe exigem que faça uma boa ação, isto diz respeito a uma
questão moralmente valiosa do ponto de vista dos valores éticos convencionalmente
aceitos pela sociedade, pois a ética fundamenta o que é bom.
É
claro que cair na teoria do relativismo ético é perigoso, no sentido de admitir
que devemos aceitar que cada grupo social tem suas próprias normas; ou no
sentido de que a sociedade deve aceitar determinadas formas de comportamentos
sociais como éticos e como valores universais. O exemplo disso é o caso do grupo dos criminosos.
Estes possuem suas próprias normas sociais, e suas próprias regras que regem o
comportamento moral de quem envereda nos caminhos do crime. Portanto, para
esse tipo de comportamento moral, a ética estabelece formas de compreender o
que é permitido ou proibido e ainda nos ajuda a compreender que
nem todas as formas de obediência às normas sociais são fundamentadas do ponto
de vista ético. Os nazistas eram obedientes demais ao Estado Nazista alemão, e,
no entanto, suas atitudes “justificadas”, foram consideradas um crime. A ética
busca mostrar qual é a verdadeira finalidade (“boa” ou “má”), enquanto possui o
caráter de pensar o comportamento moral no plano teórico-ético, ou universal
(SÁNCHES, 1993, p.8).
Podemos então
mostrar que o contexto da “ética dos negócios” segue os mesmos pressupostos da
questão teórica da ética como colocamos acima: o objeto da ética empresarial
visa estudar, a partir de contextos sociais bem demarcados e distintos, aquelas
formas de comportamentos morais que pautam as morais empresariais. A importância
dessa preocupação, que tem aparecido nos últimos anos sobre a necessidade da
ética dentro do mundo empresarial, seja na forma de formação de funcionários ou
na forma presencial de palestras e de reprovações a atitudes inconcebíveis e
danosas, reporta à questão já apontada aqui antes: a preocupação com a repercussão
social e moral que certos problemas de decisões acarretam na administração de
bens e negócios.
A reflexão ética coloca questões profundas e de caráter humanista que
visam estabelecer o consenso de que cada indivíduo define para si o que é o
bem, fundado no pressuposto de que o respeito ao outro e a não violabilidade de
seus direitos é uma regra universal do humanismo ético, ao qual deve se
sobressair sobre os meros interesses privados dos que acham que o mundo gira em
torno de si e de seus próprios interesses.
No centro
de muitas discussões sobre a problemática relativa a dilemas éticos e morais, em
que as decisões de alguns podem surtir efeitos consequentes sobre o todo,
podemos encontrar hoje em discussão no plano acadêmico da administração a pauta
da reflexão ética preocupada com os efeitos práticos das decisões, vinculadas a
questionamentos sobre o que fazer e como proceder em situações adversas, ou
como se comportar diante de incongruências dos negócios. Estas preocupações
se resumem a uma perspectiva do utilitarismo, o qual determina que as
decisões devam conduzir a provocar o máximo de bem aos envolvidos, sobrepondo o
bem a tudo, principalmente em relação a alguns indivíduos (critério da
eficácia); e o da finalidade, que determina que a bondade dos fins justifique
o uso dos meios, mesmo que em certas circunstâncias se use a mentira
(em sua máxima, em que coloca “que se alcancem os objetivos, custe o que
custar”). No cerne destas duas correntes éticas, empreendidas nas relações da
ética nos negócios, encontramos a separação que o sociólogo alemão Max Weber
encontrou para explicar o fenômeno do dualismo ético no plano do mundo das instituições
e das relações impessoais modernas racionalizadas e administradas: de um lado,
uma ética da convicção; e por outro, uma ética da responsabilidade.
Para compreendermos esta questão, comecemos por um
exemplo: um administrador enfrenta continuamente conflitos internos entre
aquilo que deveria fazer enquanto representante leal da empresa e aquilo que um
indivíduo, amigo, consumidor ou cidadão pensaria ser certo. Parafraseando a conhecida
piada do embaixador (que mente no exterior pelo seu país), um executivo é aquele
que mente no exterior pela sua empresa. Uma das responsabilidades mais difíceis
do executivo ético é manter em equilíbrio, ou mesmo integradas, entre as
perspectivas não empresariais e as obrigações gerenciais.
Uma amiga
e subordinada procurou-o para pedir, confidencialmente, um conselho. Ela acabou
de receber uma oferta de emprego de outra empresa e quer saber o que ele acha
que ela deve fazer, sabendo que sua empresa recebeu um aviso de que só tem três
meses de vida: ou melhora o desempenho ou vai ser extinta. A colaboração da
amiga nesse projeto é crucial, dada sua competência. Mas, se explicar os fatos,
ou seja, que há grandes chances de a empresa fechar e não pagar os empregados,
provavelmente vai perdê-la. Mesmo que ela fique, a informação pode vazar e
desmoralizar o restante da equipe. Ele deve contar à sua amiga os fatos,
sabendo que isto diz respeito ao dilema que ela enfrentará em fazer o bem a si ou
para a empresa? (NASH, 1993, p.192).
O dilema
colocado pela autora demonstra um entre outros desafios apresentados de forma prática
pelas necessidades do mundo dos negócios, principalmente quando apontam para a
sobrevivência da empresa. Percebemos que entre ter que
visar o bem da pessoa que competentemente produziu bons resultados na empresa e
ter que “mentir” para que a funcionária não saiba o que está ocorrendo, e para
ter a esperança de salvar os negócios, o administrador se vê forçado pelas circunstâncias,
tendo que tomar a difícil decisão.
Sua opção
pelo uso circunstancial da “mentira” nos remete a algo comum nas relações
sociais e econômicas e ao qual conduz a conflitos de ordem ética e moral. Se
mentir é um mal para as relações sociais humanas em geral, cabe dizer que nem
toda mentira é perniciosa, como foi feita muitas vezes em que as famílias
contrárias ao antissemitismo nazista escondiam os judeus nos porões de suas
casas, mentindo para os soldados da SS sobre o paradeiro de judeus em
suas casas. Eles estavam claramente contrariando os nazistas em dizer a “verdade”.
Mas, como diz o filósofo alemão Immanuel Kant, mentir
não é o melhor meio para se chegar a um fim ético, ou como diz o ditado popular
que “uma mentira dita muitas vezes pode se tornar uma verdade”.
Para Kant,
se para cada vez que passarmos por necessidades de curto prazo tivermos que
mentir, então o risco para a os homens, de forma geral, estaria em que a
“mentira” poderia ser utilizada como o recurso justificado para tirar os homens
do sufoco ou do apuro em que se encontram conforme as circunstâncias, podendo inclusive
ser perigosamente transformado como lei geral e universalmente aceito. As consequências,
segundo Kant, também estariam ligadas ao fato de que as ações e os
comportamentos morais daqueles que mentem correriam o risco de serem sempre
desacreditados no futuro, pois sempre poderiam ver o indivíduo como
potencialmente mentiroso, ou as pessoas poderiam retribuir ao indivíduo
mentiroso com a mesma moeda da mentira, como forma de pagar as injustiças cometidas.
Segundo Kant, a vontade do homem ao agir moralmente em sociedade deve buscar
ser sempre boa, não apenas para si, mas para os outros de forma universal. Vejamos
o que diz Kant tem sua Fundamentação
da Metafísica dos Costumes:
Entretanto,
para resolver de maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma
promessa mentirosa é conforme ao dever [de agir em função do bem,
citação nossa], preciso só perguntar a mim mesmo: Ficaria eu satisfeito de ver minha máxima (de me tirar de apuros por
meio de uma promessa não verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para
mim como para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: - Toda a gente pode fazer uma promessa mentirosa
quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em
breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer
uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal lei, não poderia
propriamente haver já promessa alguma, porque seria inútil afirmar a minha
vontade relativamente às minhas futuras ações a pessoas que não acreditariam na
minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma
moeda. Por conseguinte, a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal,
destruir-se-ia a si mesma, necessariamente. (KANT, 1975, p.116).
Os dispositivos
que compõem os códigos morais traduzem valores,
principalmente normas e ideais, princípios e regras que vão sendo aplicados
pelos agentes em situações concretas. Mas, acreditamos que nem sempre é
possível seguir o que ditam regras, pois as decisões mais importantes, seja de
um administrador, seja de um profissional de outra natureza, não encontram suas
respostas prontas em receituários, fórmulas, prescrições que dizem o que deve
ou não ser feito. Cabe à capacidade humana e aos estratagemas da inteligência e
dos valores éticos possíveis, o poder de agir de acordo com as decisões a
tomar. O problema humano ético é o da escolha, muitas vezes entre agir para
atingir o bem comum, ou de agir às escusas para garantir uma boa resolução para
conflitos no mundo dos negócios humanos. A economia coloca o administrador
muitas vezes diante do dilema de ter que tomar uma decisão ética, guiando seu
comportamento moral e de seus funcionários dessa forma, ou agindo às ocultas ou
parcialmente para alcançar os fins do lucro.
O dilema
colocado acima sobre a relação da decisão do administrador com sua amiga funcionária
e as necessidades da empresa, segundo o contexto da ética empresarial, comumente
é pensado de forma bipolar mediante duas éticas que se confrontam no cotidiano
para resolver emergências econômicas. Uma é a ética da convicção, ao
qual presume simplificadamente a máxima que diz: “cumpra suas obrigações custe o
que custar”, e que pressupõe como princípio o respeito ao dever ou “respeite as
regras haja o que houver”. Talvez possamos discordar aqui da visão colocada por
muitos autores sobre esta ética, pois acreditamos que é dogmático o exercício
da obediência a regras, uma vez que a ética e o sujeito ético precisam agir e
tomar decisões que são flexíveis e inconstantes. Para a ética da
responsabilidade, o que importa é que os agentes possam avaliar os efeitos
e as consequências previsíveis de suas ações, buscando conciliar os objetivos
da empresa para fins que sejam vistos como bons. A finalidade de agir em
função do que é visto como “bom” pode justificar que se tome partido de ações e
recursos que não são sempre éticos. Esta ética da responsabilidade não
converte princípios ou ideais em práticas do cotidiano, como faz a outra, nem aplica
normas ou crenças sobre virtudes filosóficas, religiosas, ou máximas
aplicando-as nos termos da ética dos negócios. Os valores do mundo econômico
só podem ser compreendidos como instrumentais e de acordo com as práticas empresariais
em jogo.
De forma
geral, a ética dos negócios responde de forma instrumental às necessidades empresariais,
valendo o esforço de conciliar conflitos trabalhistas, relacionamento com
clientes, conquistar novos consumidores potenciais que simpatizam com
determinada atividade comercial, produzir no imaginário social a ideia de que se
preservam os valores morais internamente e externamente, e, sobretudo, a
necessidade de se alcançar os objetivos intentados pela empresa pela tomada
“racional” de decisões que exigem grande poder de deliberação em função da
análise das circunstâncias e de suas complexidades.
Limito-me
a Srour (2000, p. 63) para tentar resumir que, devido às fortes necessidades de
tomadas de decisões por administradores de negócios no mundo competitivo em que
nos encontramos, é interessante analisar o porquê se toma partido de uma ética
em detrimento de outra doutrina, pois “(...) ao adotar-se a ética da responsabilidade,
realizam-se análises de risco, mapeiam-se as circunstâncias, sopesam-se as forças
em jogo, perseguem-se objetivos e medem-se as consequências das decisões que
serão tomadas”. O pensador alemão Max Weber captou essencialmente a disputa dessas
éticas e sua importância para o mundo moderno em que o Estado e as instituições
do capitalismo recente exigem esforços que vão tomando conta e absorvendo o
mundo da vida, pela administração racionalizada e racionalizadora do homem e de
suas tomadas de decisões por valores mais instrumentais.
A lógica
dessas éticas, particularmente a da “responsabilidade”, é própria do
capitalismo atual em suas fases de complexidades, como diz Weber (in SROUR, 2000,
p.50):
(...)
toda atividade orientada pela ética pode subordinar-se a duas máximas
totalmente diferentes e irredutivelmente opostas. Ela pode orientar-se pela
ética da responsabilidade (verantwortungethisch) ou pela ética da convicção (gesinnsungethisch).
Isso não quer dizer que a ética da convicção seja idêntica à ausência de
responsabilidade e a ética da responsabilidade à ausência de convicção. Não se
trata evidentemente disso. Todavia, há uma oposição abissal entre a atitude de
quem age segundo as máximas da ética da convicção — em linguagem religiosa,
diremos: ‘O cristão faz seu dever, e no que diz respeito ao resultado da ação
remete-se a Deus’ — e a atitude de quem age segundo a ética da responsabilidade
que diz: ‘Devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos’.
Ainda
segundo Max Weber, a tomada de decisões no mundo racionalmente administrado da
sociedade industrial como a nossa, se projeta como potencialmente importante
uma vez que a modernidade incorporada por meio das relações sociais em todos os
âmbitos da vida exige que as ações estejam muito mais voltadas para a assunção das
finalidades a alcançar e das consequências das ações a tomar, do que conduzir à
crença em virtudes morais fundadas em doutrinas que preservam o homem dos
efeitos instrumentais das relações do capitalismo moderno. Weber deixa bem
claro o sentido de uma ética da convicção para nossa atualidade, ao qual, de
modo geral, não se ajusta bem às necessidades dos empreendedores empresariais,
pois preferem deixar aos professores, filósofos, sociólogos e pensadores, o
ônus de ter que pensar as virtudes morais, uma vez que não são eles que terão
que arcar com o ônus de uma decisão ou de um empreendimento fracassado.
Como diz
Weber (in SROUR, 2000, p. 65):
O
partidário da ética da convicção não se sentirá “responsável” senão pela
necessidade de velar sobre a chama da pura doutrina a fim de que ela não se
extinga; velar, por exemplo, sobre a chama que anima o protesto contra a injustiça
social. Seus atos só podem e devem ter um valor exemplar, mas que, considerados
do ponto de vista do objetivo eventual, são totalmente irracionais, só podem
ter um único fim: reanimar perpetuamente a chama de sua convicção.
Por outro
lado, quando o administrador deixa de tomar as medidas que podem ser
consideradas socialmente mais benéficas, ou seja, que buscariam conciliar os
interesses e as finalidades da empresa com os da sociedade, equilibrando
conflitos, sua escolha pode surtir efeitos paradoxais na tomada de decisões: ou
o bem comum, ou terá que suportar o peso de decisões que ocasionam efeitos maléficos,
como o daquelas atividades industriais que passam por cima de todo protocolo
convencionado das leis ambientais, violentando a ecologia em nome do lucro, e
então poderão arcar com o malogro e a inépcia de suas ações.
Como escreve
Renato Janine Ribeiro em seu artigo intitulado “O governo e a ética da responsabilidade”
(FOLHA DE SÃO PAULO, 13/12/98):
Aos olhos
de muitos, a ética da responsabilidade aparece como uma indecência, o que ela
não é, e não como é: uma ética menos ciosa de princípios, mas que nem por isso
leve de portar, porque é implacável com quem não consegue gerar os efeitos
prometidos.
(...) a
responsabilidade impõe a obrigação do sucesso. Não há perdão para o fracasso. (...)
um político tem de estar preparado para a derrota e para o vazio que a ética da
responsabilidade produz à sua volta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As
relações empresarias se solidificam no sentido de propagar uma ética no mundo
dos negócios, sintonizadas com as mudanças ocorridas de acordo com as
exigências da competição no capitalismo atual, que embala a discussão pela
assunção de novos padrões comportamentais para as empresas e seus
administradores. Não se pode descartar que os desvios
de condutas que levam a tomadas de posições que não se adéquam à ética
convencionada estão de acordo com aquelas análises sociológicas que apontam as
divergências de valores e a cultivação de padrões de condutas morais dentro das
corporações, ou seja: se o capitalismo globalizado estende exigências de relações
cada vez mais impessoais nas empresas, e ao mesmo tempo encontra relações de
corporativismo, voltadas para interesses meramente econômicos, relações
paternalistas, relações de condutas pessoais se preponderando sobre interesses
maiores, então se colocam como o outro lado do desafio ético para as
instituições e para o inconstante anseio de se implantar a ética nos
negócios.
No
entanto, essa postura de uma ética voltada para os negócios, visando dar
subsídios aos administradores para a solução e o equilíbrio das necessidades da
empresa e da sociedade, não estão desvinculadas de mudanças e exigências
ocorridas nas três últimas décadas do século XX, pois estão contextualizadas
com transformações exigidas pelas agências de controles sociais, pelas sanções
públicas, pelas penalidades por danos sociais e morais, e pelo risco de ocorrerem
falências, levando as empresas a adotarem os pressupostos das “éticas dos
negócios” como meio de se preservarem da imagem de “irresponsáveis” sociais, ou
de insensíveis aos códigos morais da sociedade e, sobretudo, dos riscos de não
assumirem essa postura pela ética empresarial “responsável”.
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica
dos costumes. São Paulo: Abril, 1975. (Coleção Os Pensadores).
MOREIRA, Joaquim Manhães. A Ética empresarial no
Brasil. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
NASH, Laura L. Ética nas empresas: boas
intenções à parte. São Paulo: Makron Books, 1993.
RIBEIRO, Renato Janine. O Governo e a ética da
responsabilidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 dez. 1998.
SÁNCHES, Vásquez Adolfo. Ética. 18. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
SINGER, Peter. Ética prática. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. Rio
de Janeiro: Campus, 2000.
ARTIGO 05
ÉTICA E EDUCAÇÃO
A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CONTEXTO DE CRISE DA RAZÃO[6]
RENATO JOSÉ OLIVEIRA
Introdução
A
poucos anos do fim da década, vivemos uma era de perplexidades e incertezas, antessala
do novo milênio que se anuncia, repleto de desafios para os educadores.
Afinal, que papel cumpre a
educação em um mundo simultaneamente atravessado pelo desenvolvimento técnico
avassalador e pelo crescimento vertiginoso da fome e da miséria?
Que significa educar em um tempo
em que a violência (política, étnica, religiosa, esportiva) atinge escala
planetária, tornando tênues as fronteiras entre civilização e barbárie?
Nesse
contexto, múltiplas ações pedagógicas, muitas delas visceralmente antagônicas,
se dão simultaneamente no dia-a-dia. No círculo familiar, nas salas de aula,
nas ruas, nos morros, nas seitas religiosas, nas gangues de jovens, nas
torcidas organizadas, enfim, nos mais diversos espaços sociais, diferentes
valores morais, éticos e políticos constroem diferentes concepções de mundo e
de homem.
Essas
diferenciações — saudáveis em toda sociedade que se
pretende democrática e pluralista —, quando cozidas em um caldo de
desigualdades sociais gritantes, degeneram em obsessões e fanatismos diversos,
os quais querem afirmar suas verdades a partir da coação e do exercício da
violência, pondo sob-risco constante os mais elementares direitos da cidadania.
Ser
cidadão é poder apropriar-se dos bens socialmente produzidos, é atualizar
“todas as possibilidades de realização humana abertas pela vida social
em cada contexto historicamente determinado”. (Coutinho, 1994, p. 2)
Tal
possibilidade de apropriação deixa de existir se no seio da sociedade se
instala a competição exacerbada, expressa pelo que aqui no Brasil se conhece
por “lei de Gérson”: querer levar
vantagem em tudo.
O que
sustenta essa “lei” é, sem dúvida, uma razão de natureza pragmática, a qual se ergue sobre os escombros da chamada
razão universal. Esta certamente teve no passado seus dias de glória, mas, segundo
afirma Baudrillard (1995), em um mundo onde o que importa é o que aparece, não há mais a
possibilidade de fazer a crítica racional dos valores artísticos, morais ou
políticos, já que o sistema tem a inesgotável capacidade de absorver qualquer crítica, convertendo-a
em instrumento de reafirmação de si mesmo. Na visão baudrillardiana,
vivemos um tempo em que o
aparente deixa de ser aparente, pois tudo é na verdade superfície e imagem, o
que permite proclamar o fim da história.
Vendo
o momento atual não como terminalidade, mas enquanto transição marcada pelo fim
da centralidade da razão, que não mais desempenha o papel de guia seguro para
as ações humanas, Maffesoli (1995) destaca o fenômeno do tribalismo.
Por não acreditarem mais nos grandes valores morais e espirituais pregados pelas religiões nem
nos ideais democráticos perseguidos pela ação política coletiva, as pessoas se
fecham em grupos ou seitas, os quais são capazes tanto de construir algum tipo de
ação solidária como toda a sorte de fanatismos.
Embora
Maffesoli aposte no ajustamento dos diversos grupos ou seitas, em um processo
de “cinestesia social”, a crescente tendência à conversão do
existir humano em instrumento exclusivo de realização de fins particulares, de
interesses concernentes a esta ou aquela tribo, é sem dúvida preocupante.
A
discussão aqui projetada pretende, então, suscitar questões capazes de
contribuir para a reflexão do educador
dentro e fora da sala de aula, visto que as questões éticas atravessam nos
mais diferentes níveis, o cotidiano das relações humanas.
ÉTICA: DO
ESQUECIMENTO À NOTORIEDADE
Alain
Badiou (1995) assinala que certos termos eruditos, à semelhança de uma
solteirona esquecida que repentinamente se torna a grande atração de um salão
de festas, têm às vezes o privilégio de ocupar os espaços da mídia e da
publicidade. Tal fenômeno se aplicaria, por exemplo, à ética.
A
despeito da referência pouco lisonjeira às solteiras de mais idade, a questão
levantada pelo autor merece ser apreciada. Antes, porém, cabe perguntar:
O que significa
ser ético ou agir eticamente? No que a ética difere da moral, se é que cabe a
distinção?
Lalande
(1993, p. 348) destaca que
“historicamente a palavra ética foi aplicada à moral sob todas as suas formas, quer como
ciência, quer como arte de dirigir a conduta”.
No seu entender, cabe então definir ética enquanto ciência cujo objeto
são os juízos de apreciação sobre os atos humanos, encarados como bons ou maus.
Como frequentemente o juízo comum mistura
as questões éticas com as morais, o autor sublinha a importância de separar
as duas instâncias. Moral seria o conjunto das prescrições admitidas em uma
época e em uma sociedade determinadas, o esforço para que possa haver conformação
a tais prescrições, a exortação e a segui-las. Já a ética, agraciada com o
galardão da episteme, posto que seja situada como ciência, deve possuir caráter
mais genérico.
A
maior generalidade da ética é sustentada por Kant (Vancourt, 1987), que situa
como morais os eventos que dizem
respeito à conduta subjetiva e como éticos aqueles associados à moralidade incorporada nas práticas e instituições
de determinada comunidade, fornecendo critérios consensuais para que qualquer
pessoa faça distinção entre bem e mal, entre justo e injusto, entre certo e
errado. Para Kant, aliás, uma norma moral pode ser
generalizada e atingir a condição de norma ética, desde que seja aplicável a
todos os seres dotados de razão.
Esta, tomada enquanto princípio fundante das normas éticas
estabelece que agir eticamente significa orientar-se segundo máximas capazes de
estabelecer as formas corretas de conduta. Tais máximas são, na visão kantiana, normas
estabelecidas pela faculdade do discernimento, que, tendo em vista o universal,
institui regras para as situações particulares. Assim, um juízo ético pode ser qualificado de concreto quando
engloba tanto a máxima universal, ou seja, o princípio genérico que norteia a ação,
quanto à regra particular, aplicável a cada situação específica do viver
humano. Já Maffesoli (1994) considera a moral instância universal e universalizável. A Revolução Francesa
teria sido um exemplo típico de movimento que Maffesoli faz aí uma analogia com
o ajuste natural das diferentes funções do organismo humano, processo que os
médicos chamam de cinestesia.
Renato José de Oliveira difundiu uma certa moral, a burguesa,
para todos. A ética, por sua vez, estaria referida aos costumes particulares,
sendo tributária de grupos. Para Maffesoli a Máfia seria um bom exemplo de
grupo cujo comportamento é condenado pela moral vigente na sociedade, mas que possui
uma ética própria, seguida por seus integrantes. Ainda segundo esse autor, a
entrada na pós-modernidade anuncia a saturação do que se poderia chamar de
moral universal, a qual se faz acompanhar pelos particularismos éticos característicos
das tribos.
Ética
e moral podem ser, portanto, tomadas enquanto instâncias intercambiáveis.
Considerando as raízes etimológicas dos dois termos, verifica-se que o vocábulo
grego ethos e o latino
mos possuem significados
correspondentes, referidos à conduta e aos costumes humanos. Para os fins da
discussão aqui proposta, interessa trabalhar nos marcos do arcabouço conceptual
kantiano, construído com base no que se convencionou chamar de razão universal.
Enquanto
instâncias generalizáveis, as normas éticas supõem, conforme foi dito, a clara
distinção entre os conceitos de bem e mal. Badiou (1995) relativiza esses
conceitos:
Acaso a imagem
do bem feita por um homem branco, ocidental, cristão é a mesma feita por um
muçulmano xiita?
Ou em termos mais
genéricos: as ideias de bem e mal são suficientemente óbvias para se imporem
por sobre as diferenças culturais?
Do ponto de vista da antropologia
contemporânea, o campo axiológico se acha fragmentado, revelando uma
pluralidade infinita de sistemas normativos excludentes, cada qual possuindo
sua validade específica, conforme o contexto cultural em que é formulado.
Nenhum deles é, portanto, melhor que o outro, pois as culturas são
incomensuráveis entre si.
No cerne desse
debate, como ficaria, então, o problema do retorno ao ético enquanto modismo patrocinado
pela mídia?
Tratar-se-ia da
revalorização da ética kantiana ou de pôr em evidência uma ética assentada
sobre outros princípios?
Sonia
Marrach (1993) aprecia com destaque essa questão. Considerando
que a mídia exerce poder sobre as massas, pois é capaz de produzir fascínio,
a autora faz uma análise do caso Collor, salientando que os meios de
comunicação teriam atuado no sentido de produzir um simulacro de realidade para
crucificar o pecador (Collor) e perdoar o pecado, isto é, o projeto neoliberal
em vias de implantação no Brasil. Ao saírem às ruas para pedir o impeachment,
as massas teriam agido mais em função de um espetáculo teatral (pintar a cara,
vestir-se de preto etc.) do que em defesa dos ideais éticos e de cidadania. As
relações entre massa e mídia haveriam, então, fundado uma nova ética,
corriqueira, descartável, prática, assentada no princípio da emoção.
Se
for essa a tônica do agir ético da atualidade, não é a Kant que se retorna, mas
ao ceticismo de Hume, para quem não há possibilidade de legitimar racionalmente
os juízos éticos, isto é, conferir-lhes o
caráter de verdade. Se há regras a seguir, estas não derivam da razão, mas
dos sentimentos, sendo a utilidade o critério norteador de qualquer julgamento
ético. Tal como não pode garantir no dia de amanhã o nascer do Sol, crença que
nos é garantida pelo hábito ou costume de observar cotidianamente o mesmo
fenômeno, a razão é incapaz de formular juízos éticos por ser “lenta em suas
operações” e estar “extremamente exposta ao erro e ao equívoco” (Hume, 1939, p.
97-98).
Nessa
perspectiva, é possível dizer que o retorno ao ético é mais um fenômeno
produzido no nível do discurso institucional (governos, meios de comunicação,
entidades civis, ONGs etc.) do que no nível dos interesses humanos, os quais
estariam marcados, neste final de século, pelo recrudescimento dos egoísmos,
pela precariedade das políticas de emancipação e pela multiplicação das
violências (Badiou,
1995).
A
partir das considerações de Marrach e de Badiou, cabe levantar, entretanto, uma
questão:
Mesmo sendo
modismo a ética deve, como todo produto posto à venda, visar a compradores.
Como algo só é comprável se existe alguém potencialmente disposto a comprá-lo,
que disposições seriam essas?
Em outras palavras, a quais anseios concretos das
massas o retorno ao ético estaria respondendo?
Na
medida em que a escalada mundial da violência atenta contra aquilo que todo
indivíduo tem como fundamental, ou seja, o direito à própria vida, a
preservação desta se coloca como condição-limite. A partir daí é forçoso reconhecer a necessidade de demarcar fronteiras
entre um “bem” e um “mal”, de sorte que a relativização extremada desses referenciais
não pode ser admitida por conduzir a um vale-tudo cuja consequência é nada mais
nada menos que a destruição da espécie humana.
Portanto,
se o retorno ao ético possui o caráter de modismo, ele não se resume apenas a
isso, já que estão em jogo aspirações maiores que o simples mercado de imagens
sustentado na teatralização do agir cotidiano.
Contudo, em que
fórum pode se dar a demarcação das fronteiras referidas supra? Que dimensão do
humano pode traçá-las? A razão universal? A emoção?
Essas
questões permitem constatar que o problema ético não pode ser suficientemente
discutido se for posto ao largo do que hoje se chama de crise da razão.
CRISE DA RAZÃO
OU DE UM
MODELO DE RAZÃO?
Quando
se fala em razão tem-se a ideia de que esta se constitui em algo único,
universal, capaz de conservar-se incólume através dos tempos históricos.
Bem
mereceria, nesse caso, ser chamada A Razão e respeitada como possuidora de
estatuto divino. Contra ela Nietzsche (1993) dirigiu sua crítica, identificando-a
com a dimensão apolínea do existir, caracterizada pela busca da beleza, da
clareza, da retidão e da justiça. Para esse filósofo,
enquanto divindade ética, Apolo exige dos homens o senso da medida e o
autoconhecimento, condicionando o belo a esses dois princípios.
Todavia,
a existência humana possui outra dimensão, a dionisíaca, ligada ao êxtase, à
busca do prazer, às potências da paixão. Em dado momento, as duas dimensões
opostas achavam-se harmonizadas, momento este representado, segundo Nietzsche,
pelo teatro trágico de Ésquilo (525-456 a.C.) e de Sófocles (496-405 a.C.). Em
Sófocles, por exemplo, a saga edipiana permite vislumbrar a comunhão entre o
apolíneo e o dionisíaco:
Édipo tem a sabedoria e com ela decifra o enigma que lhe propõe
a esfinge; contudo, é justamente o saber que o condena ao erro e à
miserabilidade expressos pelo ato de matar o pai e desposar a própria mãe. Só
que o erro moral é inseparável do êxtase, constituindo-se o prazer e a dor em
sentimentos que se harmonizam no curso da existência humana: “tudo que existe é
justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado. Isso é o teu
mundo! Isso se chama um mundo!” (Nietzsche,
1993, p. 69).
A
harmonia teria terminado quando Eurípedes introduziu na tragédia o prólogo,
recurso explicativo cujo objetivo era racionalizar
o drama. A partir daí, Nietzsche vê a derrocada do dionisíaco e o consequente
triunfo do apolíneo, porém não é Apolo quem fala pela boca de Eurípedes e sim
um intérprete: Sócrates.
Avesso
a tudo quanto se ligasse ao irracional, Sócrates teria dirigido seu olhar
retificador contra as ilusões que mascaram a realidade, impedindo a verdadeira
compreensão das coisas. A pretensão socrática era corrigir o mundo pela razão, desiludir o homem, ensiná-lo a se
colocar no caminho da verdade. Por trás do “sei que nada sei” haveria, no entender
de Nietzsche, um projeto nada modesto: fazer da razão, alçada ao patamar da
universalidade, o grande guia da conduta humana.
O
primado da razão teria então gerado a infelicidade, já que implica em renunciar
ao aqui e agora, ao momentâneo, ao transitório, ao precário, aos desejos em
função de um ascetismo intelectual fundado na busca da verdade. Como consequência
da cisão entre pensamento e vida surge “esse homem
abstrato, guiado sem mitos, a educação abstrata, os costumes abstratos, o
direito abstrato, o Estado abstrato” (Nietzsche, 1993, p. 135).
Essa
crítica peca, entretanto, justamente por considerar que uma mesma e única razão
se impõe no mundo ocidental, subjugando o homem há vários séculos. Entretanto,
como salienta Pessanha (1989), as racionalidades grega e moderna diferem
substancialmente. A razão grega não
tinha os mesmos fundamentos da razão moderna, construída sobre o pensamento
científico dos séculos XVI e XVII, mas erguia-se, outrossim, sobre a palavra,
sobre o argumento, o qual deveria convencer, persuadir.
O
homem grego era eminentemente político, isto é, respirava a atmosfera da polis,
caracterizada, sobretudo no período clássico (séculos V e IV a.C.), pelos
laços de philia (amizade) entre os cidadãos. A despeito da posição
social ocupada, um cidadão via o outro como semelhante (hómoioi), sujeito
de direitos e deveres. É certo que a condição cidadã variava bastante de cidade
para cidade, havendo, como sublinha Aristóteles (1991), profundas diferenças entre
habitante e cidadão propriamente dito. Segundo o estagirita, o habitante não
fazia senão participar de um modo imperfeito da vida da polis, seja por
estar na condição de escravo, por ser estrangeiro ou por não possuir, como no
caso do artesão, tempo livre suficiente para cultivar os ideais de civismo
necessários à participação no governo. Os cidadãos, ao contrário, não se dedicando
às atividades servis, podiam participar das reuniões públicas (ekklesias)
que deliberavam sobre as questões de Estado.
Embora
restritiva do ponto de vista humano, já que a condição cidadã não era
desfrutada pela maioria da população das cidades, a
sociedade grega não via o ético e o político enquanto esferas separadas.
Para deliberar sobre a justeza dessa ou daquela questão, era preciso pôr em
confronto as diferentes opiniões, sendo as controvérsias, além de inevitáveis,
sadias para o exercício da cidadania.
A razão que sustentava as deliberações possuía, portanto, natureza
argumentativa, não cabendo dela exigir, conforme assinala Aristóteles (1992), a
precisão de uma demonstração matemática. Em consequência, o discurso de um
orador era construído sobre as ambiguidades da situação analisada, não sobre as
verdades intrínsecas das premissas que fundamentam os raciocínios científicos.
Ele visava um auditório que iria escolher, após um período de reflexão, entre
alternativas possíveis, como por exemplo, condenar ou absolver Sócrates do
crime de corromper espiritualmente a juventude.
Para
Chaim Perelman (1988, p. 21), a razão argumentativa, apoiada sobre as bases da
retórica clássica, declina a partir do século XVI com o advento do pensamento burguês,
“que generalizou o papel da evidência, quer se
tratasse da evidência pessoal do protestantismo, da evidência racional do cartesianismo
ou da evidência sensível do empirismo”.
A razão moderna, tendo como um de seus pilares o cartesianismo,
busca fundamentos nas evidências matemáticas. Afinal,
para Descartes, Deus, o grande geômetra, criara o universo tendo por ferramenta
básica a clareza dos números e das relações geométricas, não a ambiguidade das
palavras. O método cartesiano exorta o homem a evitar o erro, o qual pode ter origem
na prevenção e na precipitação a que está sujeito nosso juízo. Tais atitudes, certamente
danosas ao espírito, ligam-se ao que é incorporado a partir dos costumes, os
quais tendem a produzir falsos julgamentos:
Desse modo [...] passei a não crer com demasiada
firmeza em nada do que fora inculcado por influência da exemplificação e do
costume. E assim me libertei, pouco a pouco, de inúmeros erros que podem obscurecer
nossa lucidez natural e tornar-nos menos capazes de entender a razão
(Descartes, 1989, p. 57).
Mas
a razão moderna possui também outro pilar na ciência experimental, que tem por
objetivo dominar a natureza, colocando-a a serviço do homem. O empirismo baconiano condena,
então, a investigação filosófica por considerá-la construída sobre alicerces
frágeis, ou seja, por basear-se mais na especulação que na coleta de dados em
quantidade e qualidade desejáveis para formular os raciocínios. A correta
investigação é, para Bacon, a de cunho experimental, que deve ser judiciosamente
dirigida, sob pena de se ver reduzida a um mero tatear em meio à escuridão:
Mas a verdadeira ordem da experiência
[...] começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar
o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida — nunca vaga e errática
—, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos
experimentos (Bacon, 1973, p. 56).
Os
tempos modernos vão se caracterizar, então, pela confiança quase cega no progresso da ciência, vista não só como
instrumento de dominação da natureza, mas também como redentora da humanidade.
Para os iluministas, somente uma razão alicerçada sobre as sólidas bases do
conhecimento científico poderia arrancar o homem das trevas da superstição e da
ignorância, em última análise responsáveis pela penúria e pelos flagelos
sofridos por boa parte do gênero humano.
Como
as leis do mundo físico se achassem bem estabelecidas, permitindo o controle e
previsão dos fenômenos naturais, o pensamento científico do século XIX busca agora
estabelecer as leis do desenvolvimento biológico e histórico-social. Surgem, pois,
a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies, a qual abala
significativamente as teses criacionistas sustentadas pela religião, e o positivismo comtiano, crítico contundente
da metafísica. Se a natureza possui uma ordem intrínseca que lhe confere
funcionamento harmônico, para Comte a sociedade lhe segue o exemplo. Quando o homem abandonar as elucubrações estéreis, substituindo-as
por formas positivas de pensar, compatíveis com sua inteligência, haverá de
encontrar essa harmonia.
Embora
contrários à visão de que a sociedade se constitua em todo harmônico, os
pensadores socialistas não se opõem à ideia de progresso. Marx dirá,
aliás, que este é movido pelos conflitos, pela necessidade de superação do
velho por um novo que nasce das contradições geradas no interior do próprio
velho. Mesmo sem se arriscar a ditar “receitas para os caldeirões do futuro”, Marx
entendia que a superação do capitalismo não era tão somente uma questão de
desejo, mas conseqüência de uma lei do desenvolvimento histórico
cientificamente determinada.
Feito esse breve panorama do processo de construção das bases
científicas da razão moderna, é possível compreender então por que a razão argumentativa,
centrada no domínio da opinião, do provável, do plausível e não no campo das
certezas definitivas (Pessanha, 1989), foi sendo progressivamente
desqualificada. Embora esse declínio não tenha implicado desaparecimento,
representa, no curso da modernidade, um evidente desprestígio da argumentação
enquanto instância capaz de intervir na busca de soluções para os mais diferentes
problemas humanos.
Reivindicando o estatuto de universalidade, a razão moderna se
declara, portanto, como a única legítima, quando na verdade constitui apenas um
tipo de razão. Em conseqüência, com a crise dos ideais da modernidade, a razão
moderna permite que sejam generalizadas contra outras formas de racionalidade
as críticas dirigidas contra si. O questionamento empreendido por Nietzsche é
então retomado por autores pós-modernos, como por exemplo, Maffesoli.
A
abordagem maffesoliana da realidade humano-social nega que exista uma verdade
ou um “em si” por trás das ações humanas. O mundo é tão somente espetáculo no
qual o que acontece — justiça e injustiça, liberdade e opressão etc. —
encontra sua justificativa no próprio palco das ações humanas e não em qualquer
sistema normativo que, apontando para um dever-ser, procure explicar desvios
constatados.
Para Comte (1978), o termo positivo possui várias acepções.
Opõe-se ao quimérico (representado pelas elocubrações teológicas e metafísicas),
à indecisão (caracterizada pelas dúvidas e pelos debates que não encontram soluções
para as questões que se propõem a discutir), à ociosidade (vista como expressão
de uma curiosidade estéril, que nada traz de proveitoso para o desenvolvimento
do indivíduo e da espécie) e à negatividade (ligada ao conhecimento desordenado
que nada constrói).
Segundo Konder (1992, p. 45), Marx acrescentou esse comentário
ao posfácio da segunda edição do primeiro volume de O capital, polemizando contra os discípulos de Comte.
Conforme dito anteriormente, o esgotamento dos ideais
democráticos e da crença na emancipação coletiva seriam, no entender de Maffesoli
(1995), sintomas característicos do colapso do projeto da modernidade. A luta
pela liberdade e pela transformação social é substituída pela busca de
“liberdades intersticiais” que se colocam como as conquistas possíveis no espaço
social de atuação das múltiplas tribos.
Nessa perspectiva, os valores éticos se relativizam
e o político se configura enquanto espaço de representação teatral onde não há
credulidade ou logro, apenas personagens cujos papéis não constituem
simulacros, mas o próprio viver:
É difícil opor um país real a um país político, não
existem enganadores e enganados, mas uma atitude global que faz com que a
lucidez não impeça o investimento, ou mais exatamente uma situação que faz com
que a paixão tenha uma grande importância no funcionamento da razão,
perturbando-lhe os efeitos (Maffesoli, 1986, p. 110-111).
Ao
afirmar que a imagística popular fala da precariedade, da finitude, do caráter
efêmero da realidade com muito mais pertinência que a razão, Maffesoli
atesta a falência do projeto filosófico da modernidade, decretando o triunfo da
aparência sobre a essência, do êxtase em relação à sobriedade, do dionisíaco sobre
o apolíneo. Os esquemas macroestruturais concebidos pela razão moderna com o
intuito de analisar o tecido social, como o positivismo e o materialismo
histórico, não podem dar conta de um mundo caótico no qual os mais exóticos
arranjos humanos se fazem e desfazem sem obedecer a princípios previamente
estabelecidos:
As partículas elementares constitutivas da matéria
social, se nos permitem esta metáfora, formam configurações particulares que
podem ser harmoniosas ou absolutamente aberrantes, mas elas não obedecem a
nenhuma outra lei, salvo aquela da sua dinâmica própria, é essa dança
nietzscheana que proporciona o mais belo e o pior, é essa dança que proíbe a explicação
causal e impede a imposição planificadora do controle social, da mesma maneira
que proíbe o julgamento moral num ou noutro sentido (Maffesoli, 1986,
p. 117).
Habermas
(1990) assinala que, para ser total, a crítica da razão feita por Nietzsche
deve se colocar fora dos horizontes desta última, projetando-se a partir da
dimensão dionisíaca do existir. Em conseqüência, não há
outro caminho senão hipostasiar o não racional e o estético enquanto o outro
da razão. Trata-se, assim, não do resgate da harmonia entre os contrários
existentes no espírito trágico esquiliano (ou sofocliano), mas do afã de que
Dioniso, qual Messias, venha redimir a humanidade sufocada por séculos de
racionalidade. A mesma matriz de pensamento serve também de apoio ao
pós-modernismo de Maffesoli.
Tendo
claro que a crise da razão moderna não representa a crise de toda a
racionalidade, Habermas busca retomar o projeto da modernidade, vendo como
alternativa a chamada razão comunicativa. Os pontos de contato e as diferenças
em relação à razão argumentativa serão apreciadas no próximo tópico, em que se
buscará situar a educação em relação à problemática até aqui discutida.
NO CONTEXTO DE
CRISE, QUAL
O PAPEL DA EDUCAÇÃO?
De
acordo com Kramer (1993), a educação pode ser tomada enquanto prática social à
qual se vincula determinada visão de mundo, transformadora da realidade ou não.
Considerando
a dimensão transformadora, a educação persegue, entre outros fins, promover o
autoconhecimento do educando enquanto ser pensante e construtor de sua existência
subjetiva e histórico-social. Trata-se, então, de levar quem se educa a se
posicionar criticamente em relação à natureza, à sociedade, ao mundo e ao tempo
em que vive.
Nos
marcos de uma visão confirmadora do existente, os processos educativos
desenvolvidos na família e nos primeiros níveis escolares levam primeiro a
criança a conhecer o que ela não deve fazer. Segue valendo, como princípio geral, a norma ética do senso comum: seu
direito termina quando começa o do outro.
Caminhando um
pouco pelas sendas abertas por Badiou (1995), que não ditos podem emergir desse
dito popular?
O
outro, esse desconhecido anônimo, é alguém que potencialmente me ameaça. Respeito-o, porque não quero ser desrespeitado, não invado seu
espaço porque não quero ter meu espaço invadido, enfim, o que norteia minhas
ações é uma série de nãos. A partir daí, o outro será tão mais
reconhecido, quanto mais se aproximar de minha imagem refletida no espelho. É
a mim mesmo que desejo respeitar, não a um outro diferente de mim (Badiou, 1995,
p. 36).
Nesse ponto, um
desafio se coloca para a educação: há como superar essa ética do não mal, construindo
as bases de uma nova ética?
Na
medida em que o “bem” não é, como foi dito, um universal abstrato nem tampouco
pode ser relativizado a extremos que atentem contra a própria existência humana,
a questão central colocada para a nova ética é como validar ou não um dado conjunto
de ações humanas. A razão comunicativa defendida por Habermas pretende
atacar esse problema, vislumbrando o consenso entre indivíduos, construído em
um contexto de diálogo, enquanto alternativa viável. Segundo Rouanet
(1992), a interlocução se dá visando estabelecer critérios de validade quanto a
três proposições básicas: as referentes ao mundo dos objetos (proposições
objetivas), as referentes ao mundo social das normas (proposições normativas)
e as referentes ao mundo das vivências e emoções
(proposições subjetivas). A diferença básica com relação à razão moderna
é que, no agir comunicativo, não existe validação a priori do que
quer que seja: as verdades são construídas pela interação mútua dos indivíduos,
cujo debate desembocará em soluções consensuais para as diferentes questões em
jogo.
Endossando
a proposta habermasiana — que no seu entender tem o mérito incontestável de oferecer
uma saída para a crise da razão moderna sem descambar para o irracionalismo —,
Rouanet (1992, p. 347) resume bem seu espírito quando afirma:
Mas, na dúvida, é preferível apostar em Habermas no
sentido de Pascal: se ganharmos, ganharemos tudo; se perdermos, não perderemos
nada, porque não podemos ficar mais pobres do que já estamos.
Tendo em vista a
complexidade das relações humanas, é possível apostar no consenso como a via que
resolve todos os problemas?
Ou há domínios, como
a política, impensáveis sem o dissenso (Rancière, 1995)?
Na
medida em que as ações políticas se desenvolvem na disputa pela vitória
deste ou daquele projeto ancorado em determinados sistemas de valores, há,
sem dúvida, um auditório que deve ser convencido, persuadido da justeza desse
ou daquele argumento. Conforme frisa Perelman:
Toda argumentação, qualquer que seja, propõe-se
influenciar um auditório — no sentido amplo dessa palavra, que engloba não
apenas auditores, mas também leitores — e esse auditório não é uma tábua rasa, antes
já admite certos fatos, certas pressuposições, certos valores e certas técnicas
argumentativas (apud Pessanha, 1989, p. 235).
Para
a razão argumentativa, o importante é obter o aval do auditório e não alcançar
o consenso, o qual se configura em elemento circunstancial, transitório,
precário, efêmero. Os fóruns de decisão que, entre outras questões, devem
resolver o problema da demarcação de fronteiras entre um “bem” e um “mal”, não
são, portanto, outros senão os diversos auditórios cuja persuasão é necessária.
É cabível objetar que, ante as desigualdades sociais existentes
no mundo de hoje, os diferentes sujeitos do diálogo não disputam os auditórios
em pé de igualdade, impondo por outros mecanismos seus pontos de vista. Isso
mostra, porém, que não só a argumentação, mas o próprio solo argumentativo
precisa ser construído. Se um dos interlocutores possui meios para publicizar
seu discurso e o outro, não, já não há mais disputa: tudo passa a ser
simulacro, aparência, ilusão.
Educar para uma nova ética
significa, pois, ter consciência dessas limitações, não perdendo de vista o
fato de que o discurso ético, tal como ocorre com o discurso filosófico, é
construído em estado de permanente tensão entre a contingência histórica e o
desejo de universalidade (Pessanha, 1989), tensão esta que caracteriza o
próprio existir do homem.
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[2] Fábio Henrique Cardoso Leite,
Professor de Filosofia do Direito da UNIGRAN, Mestrando em História/UFM.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. (com
grifos)
[3] O poema de Parmênides é exatamente assim, um mito, uma lenda de ascensão
celeste, e nessa ascensão é que lhe é revelado que “ o ser é” e “o não-ser
não é”.Alguns autores indicam, como contraposta à via do ser, caracterizada
pela discriminação do ser e do não ser pela verdade, a via da aparência,
caracterizada pela opinião, nas quais não há uma confiança desvelante.
Contrapondo-se à discriminação da verdade, a opinião constitui o caminho
de quem não distingue ser de não ser. http://www.enciclopedia.com.br/med2000/pedia98a/filo7fvl.htm.
acesso: 20de maio de 2004.
[4]
WALTER OMAR KOHAN, Professor Titular de Filosofia da
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 82, p.
221-228, abril 2003 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br
(com grifos)
[5]Amadeu de Farias Cavalcante Júnior, Formado em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, com Especialização em Educação pelo Centro de Educação na UFPa e Mestre em Sociologia pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPa. Atualmente é docente da Disciplina Ética Profissional para o Curso de Administração/ESMAC. - Adcontar, Belém, v. 5, n.1. p. 15-34, junho, 2004. (com grifos)
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